quarta-feira, 23 de março de 2011

,”(Re)Cantos d’Amar Morto”, de Pedro Castelhano (Rogério Rodrigues)

Teve lugar,no passado dia 19/03/2011, na Biblioteca Municipal,a apresentação,pelo Dr.Amadeu Ferreira, do livro de poemas de Pedro Castelhano,pseudónimo de Rogério Rodrigues,”(Re)Cantos d’Amar Morto”.Motivadas pela qualidade dos intervenientes,as pessoas vindas de várias partes do país encheram por completo a sala do auditório da Biblioteca.

Porque o acontecimento suscitou tanta curiosidade e interesse,transcrevemos na íntegra o texto de apresentação do dr.Amadeu Ferreira,assim como o do autor da obra.
 O VOO DO ENTARDECER NA GEOGRAFIA DA MEMÓRIA

1.Rogério Rodrigues fez-nos esperar quarenta anos até nos dar o segundo livro de poemas [Livro de Visitas, aos 23 anos]. Omito aqui os seus vastos pergaminhos literários, onde também se inclui a ficção [A outra Face da Morte, novela]. Fique nota, no entanto, de que são raros os jornalistas a seguir este caminho, onde avulta Fernando Assis Pacheco. Porém, este é o primeiro livro de poemas de Pedro Castelhano. Agora que, de algum modo, já não tem Peredo dos Castelhanos, Rogério Rodrigues transporta-o, com pouco disfarce, agarrado ao nome. E desde logo, por aí, ficamos situados e o terreno marcado.
António Baptista Lopes e a Âncora iniciam com este volume uma colecção de poesia. Exige-se alguma coragem para tal pois os poetas, quase todos, são gente que é perigoso frequentar. Estou certo que terá sucesso, pois não poderia ter começado da melhor maneira a Colecção Universos, com este poemário do seu director. A grafia é cuidada, a capa de um amarelo que talvez nos queira ofuscar para lá do conteúdo, porém sóbria e com pormenores muito agradáveis.
Para mim é uma honra estar aqui a apresentar este livro feito por amigos, mas sobretudo porque é um livro de poesia, em Moncorvo. Há dias escrevia no meu blogue, onde tenho traduzido para mirandês alguns poemas de Pedro Castelhano, que me pareceu mais alta a Serra de Reboredo, e o problema não eram os meus olhos. Agora acrescento que, nestes tempos de tanta dificuldade e incerteza e com assomos apocalípticos, o mundo não está completamente perdido enquanto a poesia morar entre nós.


O VOO DO ENTARDECER NA GEOGRAFIA DA MEMÓRIA
Comecemos pelo título que, qual porta, nos interpela pela sua aparente estranheza, mas que se apresenta como essencial pista de leitura, (Re)Cantos d’Amar Morte.
A(s) palavra(s) (Re)Cantos é(são) como certas granadas, explode(m) para todos os lados: a geografia [aqui e arredores, a vila, a aldeia, a montanha, o subúrbio]; a música [os violinos, as rabecas, as cantigas ao fim do dia, Brel, Callas, Beethoven, Mozart, José Afonso (evocando-nos como órfãos da madrugada)], sendo o canto o segredo da salvação que ele deixa à sua neta Beatriz diante de um mundo estilhaçado E canta, canta com paixão / e compaixão pelos que já estão proibidos de cantar [Poema à Neta]; o canto-poesia-epopeia, embora sob a figura tutelar de Luíza Neto Jorge [Dezanove Recantos e outros poemas, 1969], já mais como (des)epopeia (por isso nada quer com a de Camões), porque tecida do dia a dia chão, sem barões assinalados, já não dos altos objectivos alcançados, mas dos (re)começos a cada madrugada até ao fim da noite, até ao fim da morte; a própria geologia, no sentido da pedra de canto de Vitorino Nemésio, pura pedra, dura pedra, suporte da construção, estas terras de pedra; e por fim aquele (Re) inícial, entre parêntesis, que dá voz a todas as persistências, convocando o tempo no seu retorno sem fim, eco dos longos silêncios - este é também um poema que se assoma à janela do tempo, da não desistência, e portanto esse (Re) é sobretudo uma raiz de esperança e esta é, nesse sentido, uma poesia de resistência.
D’Amar, o poeta não deixa dúvidas de que nos fala daquilo que ama, e daí uma grande espessura e intensidade, em que tudo e todos são convocados, da mãe à neta com muitos mortos pelo meio. Este termo do título, é como uma pancada no sentido do primeiro, os (Re)Cantos: é de pessoas que esta poesia trata e de tudo o que tem a ver com elas, nada de telúrico aqui ressoa [nesse sentido é um anti-Torga], o que dá um sentido muito próprio à geografia de qua acima falámos. É o amor que vence a morte, ainda quando atravessado longa e repetidamente por ela.
O Morto do título remete-nos para a memória, mais uma vez para o fluir do tempo, pois a morte é um dos pilares desses fluir, sendo a vida o outro pilar, sucedendo-se a morte e a vida num devir sem paragem. É esta uma poesia que chama pela morte, mas à maneira do caçador que busca a presa e a quer ter à sua frente para a poder dominar, matar. Depois fica todo o espaço, todo o tempo para o recomeço. Depois de amanhã [21 de março] começa mais uma primavera, mas tal só será possível porque o inverno morreu e lhe deixou espaço.
Pedro Castelhano começa com um poema-aviso, glosando um tema pedido de empréstimo ao latino Horácio Flaco [é esta uma poesia cheia de constantes citações, como veremos], Carpe Diem [Odes, Livro I, XI][1], só o instante conta, aproveita-o, o tempo é hoje. E com este referente estamos no núcleo, no coração do tempo, o agora, certo, que define o antes e o depois, incertos. Mas um novo aviso surge: caro leitor, prepara-te para uma longa caminhada, primeiro como quem desce ao Hades, embora visando além dele e dele regressando em nova encarnação de Orfeu - o piano é um regato húmido e sonoro / atravessando a noite à procura da madrugada -, depois incitando-nos a navegar, ainda quando a vida caminha para o seu termo vou cortando as veias da alegria / nas últimas horas do dia / e alinho pedras à procura que naveguem. [Carpe Diem]
Vamos, então, navegar um pouco pela poesia de Pedro Castelhano. Não sou um crítico literário, nem aqui farei de conta. Valha, então, esta minha apresentação como um incitamento à poesia, neste caso à leitura destes (Re)Cantos de Pedro Castelhano, aqui vos deixando algumas notas da minha própria leitura (tantas outras seriam possíveis!), notas um pouco soltas, pouco sistematizadas, mas sentidas. Deixo-vos já com a impressão que me ficou da leitura e ficará dito, em síntese, o essencial: temos aqui um poeta, um grande poeta, espesso, maduro, despojado na palavra, arrojado na construção, senhor de recursos culturais notáveis e notavelmente enquadrados, linear nas suas obsessões, que dá voz à rouquidão da vida, não da frieza das pedras e dos montes mas das pessoas, das pessoas destes montes onde deixou a infância que reinventa, preocupado em a agueira por onde corre o sangue do poema. Pelo caminho liga-nos à nossa melhor tradição, além dos já citados, sobretudo e mais que ninguém Luíza Neto Jorge, também Jorge de Sena, Natália Correia, Pessoa / Caeiro e Manuel Bandeira, ou aos clássicos, tantos os nomeados. Apesar dessa ligação, é grande o desamparo que anuncia: não dispomos de raiz, temos de pegar de estaca [Pega de estaca], então, livre, original sem esconder as afinidades, sem precisar de pedir licença para entrar no céu da poesia, pois lhe diz como São Pedro à Irene de Manuel Bandeira: Entre Irene (Rogério, Pedro): Você não precisa pedir licença [Manuel Bandeira, “Irene no Céu”].
Há toda uma geografia que se desenha dentro dos poemas. Uma geografia da memória, daqui irradiando para outras paragens. Uma memória arvorada em critério e fonte de conhecimento, o que vai muito além da experiência que tantos já convocaram como mãe do conhecimento. Bem além dela, estamos no domínio de uma radical subjectividade, no sentido da experiência do poeta, mas sobretudo no sentido de se dizer que viver é preciso, viver é insubstituível. Diz na Carta à Neta, Quando passeares na cidade, não te esqueças das montanhas. / 
Ali se escondem os espíritos, os abandonados pelo tempo, / 
os banidos ladrões falhados do assalto à alegria. [Carta à Neta]. Provas? Aí estão as rugas, os relevos vazios de um tempo calcinado / pela memória de que nunca houve deuses. E não. [O último encontro com Sísifo]
O mapa desta geografia pode não aparecer totalmente nítido a quem não está habituado aos sinais e curvas de nível que o delimitam, pois ele inclui a cidade e seus subúrbios Aqui, nos subúrbios da flor / ... até o ladrar dos cães / é poluído [(Re)Cantos], ou o espaço da web, o mar onde agora se navega, os eremitas / na solidão do wireless / ligados ao mundo que os desconhece [Tanta Fúria] tribo de que o poeta, confessadamente, também faz parte.
Alguns dos mais belos poemas de Pedro Castelhanos são pincelas rápidas, em jeito de aguarela, A noite aproxima-se / mais rápida / porque os prédios são mais altos [Do Quotidiano], a lembrar Alberto Caeiro, esse que diz ‘sou do tamanho do que vejo’, e ‘Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave. Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu’.
Num certo sentido, esta é a poesia de alguém arrancado com violência ao seu espaço-paraíso, ao tempo que ainda vive no encantamento da rabeca/violino do Manquinho de Açoreira. Por isso, nunca chegou a ser um emigrante, pois nunca chegou a sair. Agora, outros ele e o tempo, outro o espaço, já não consegue regressar. Peregrinas pelo espaço, mas também o espaço é mutável. / Quando tu mudas, também ele vai mudando. Ficam as montanhas / mais desabitadas e o coração da terra com síncopes mal curadas. / Os teus olhos são mais débeis. Só a fotografia é imutável. É a infância o primeiro pilar da memória Regresso à terra de onde nunca cheguei a partir. De bornal vazio bato à porta e ninguém responde. A casa deserta e na varanda agridem cardos mal tratados. [Prosema]. Por isso não era de rabeca o tocar do Manquinho de Açoreira, mas continua a ser de violino. E branco. …o violino da minha infância. [Prosema] essa infância que não passa de um novelo recolhido [Nove Poemas de Novembro, VIII]. É fundo o lamento em que se evoca essa figura do Manquinho de Açoreira que virou um mito, até no modo como se conta que terá (?) sido devorado pelos lobos, que primeiro encantou com sua música que soltava da sua rabeca [ele também faz parte da mitologia da minha infância]: Ai Manquinho! Ai Manquinho! Pego-te ao colo antes da chegada dos lobos, a ti, o violino da minha infância, a melodia sem fim para o meu ouvido surdo [Prosema]. Como não havia de tremer essa mão da infância, se ela não consegue projectar a sua luz sobre a sombra dos dias? A mão está rude quase / inerte, ouve os ossos, / o rumorejar da dor / mas a mão o que teme / é a infância [Mão dorida]. Embora sem concessões à saudade fácil ou à lágrima ao canto do olho, esta é uma poesia que vive de distâncias em relação ao espaço e ao tempo, por aí se filiando naquela menina e moça me levaram de casa de meus pais, ou nas froles do verde pino a quem pergunto novas do meu amigo ai Deus, i u é? Uma tradição poética que em Pedro Castelhano ganha uma dimensão dramática, incapaz de encarar as suas aporias sem solução, onde vai muito do drama de uma parte do nosso país nos últimos cinquenta ou sessenta anos. Um país que, traumaticamente, perde muitas das suas referências, referências que nunca foram as caravelas quinhentistas, essa pátria distante e sem muros contra os quais fosse possível medir a altura do mijar. Essa tristeza de partir, que João Roiz de Castelo Branco tão bem cantou, mas agora é outra a senhora de quem os olhos partem. Por isso pede à noite, seca-me os olhos para que as lágrimas não inventem regatos nas rugas da face. [Prosema] Está a nordeste de tudo [Natal], algures, como diria Pires Cabral, em solidão e abandono, no deserto. Aquele que sai já não pode voltar, pois o que volta é já outro, como outro é o lugar a que se volta. E isto é sem cura, como diria Sá de Miranda, agachado perante o império do tempo que nunca se detém. O tempo rouba-nos o espaço a que estávamos agarrados e este já não é capaz de comportar o tempo. Em rigor, a nossa terra é um deserto, em que já não nos reconhecemos, mas de que um dia se esqueceram de nos cortar o cordão umbilical, esta a fonte onde desaguam os veios da angústia. Vais de visita a lugares de idade nova quando o Outono / rouba aos deuses as cores mais sangrentas e fatais, as cores / mais belas. Vais e não encontras nada. Apenas um deserto / dentro de ti e silêncios que nada quer interromper. Ainda que o mar rejeite o barco, nunca este deixa de estar amarrado ao cais, demasiado frágil para navegar. Viajamos não apenas no espaço, mas também e em simultâneo no tempo, afastamo-nos fazendo-nos outros. Mas esta viagem do poeta é sobretudo dentro de si próprio, que se procura: Há / que tempos te procuras [Nove poemas de Novembro, IX]; Estou de abalada para dentro de mim/ … / E a ternura é um lenço sujo que escondo no bolso roto [Carta à Neta]. E conclui com segurança Um dia hei-de chegar / À MONTANHA. [Montanha]
É a morte o outro pilar da memória, tantas amarguras do passado, sino dolente na tarde calma [Stabat mater]. Porém, perante a morte e o seu clamor, a sua nudez, proclama o poeta o pudor, talvez seja melhor dizer a dignidade, de vestir as palavras com trajes decentes, mas esse manto não é adequado à espera pela ressurreição dos mortos, ao frio que aí vem [Stabat Mater...], pois o sofrimento mata as palavras e mal tolera olhar-se [O último encontro com Sísifo]. Quando se define como a última pedra do caminho que ainda não percorri, é para gritar Que os deuses ressuscitem que eu quero apedrejá-los [O último encontro com Sísifo]. É a revolta do condenado Sísifo, que atira aos seus carrascos a pedra que o obrigam a carregar ladeira acima, sem descando. É aqui que o poeta chama a noite do esquecimento, rosa negra / do meu silêncio / mãe dos cegos / e de todos os que já estão cansados de ver. [Nocturno] Essa noite a quem pede liberta-nos da euforia da luz, essa luz que tantas vezes convoca Quando chegará o dia em que a Morte / é o princípio da Luz? [À procura da luz]. Mas são os mortos a presença permanente, a obsessão dos vivos, por isso há que saltar lá bem para trás, onde a morte ainda tinha chegado, convida o poeta Quando o Natal chegar / olha os filhos como se só então nascessem / e os dias fossem cristais / partindo grãos de romã [Natal].
Uma palavra sobre o belo conjunto Nove Poemas de Novembro, esse mês dos mortos, mês onde a memória se abre como os ouriços dos castanheiros, ouriços feridos de morte, o mês que traz a obsessiva presença dos ausentes, a naftalina dos verdes anos, mês que acende a geografia do vazio, o lugar dos mortos, onde recomeça / a memória. O mês em que descobres que não tens lugar entre os teus mortos. Esse era o tempo e o espaço que o poeta cuidava seus, onde tinha feito a sua casa, porém, esse espaço interpela-o O que vens aqui fazer?/ / Vens de fato caminheiro. Mas só te resta caminhar, andante / apenas na memória andando, na verdade mentindo. Desses espaços, desse tempo, apenas ficaram as montanhas, pois as gentes já não são as tuas, são uma desilusão. Perdes-te por esses cafés que são templos desertos onde o respirar se ouve. Aqui fica um bom antídoto contra um certo tipo de saudade ou revivalismo.
Os mortos estão sempre presentes, mas sem serem nomeados, insinuando-se de modo cru e violento Quando fui atropelado na rua / Saibam que anoitecia / E eu estava a contar estrelas [(Re)Cantos]. A morte apresentada como o início da luz Quando chegará o dia em que a Morte / é o princípio da Luz / e se inicia o ciclo da Primavera? [Luz] só a morte não é Interrogação [Nove poemas de Novembro, IX]. Qualquer dia faz anos que a morte nos ensombrou [Stabat Mater]. Temos aqui feridas muito fundas que, embora ainda não tenham sarado completamente, os poemas são a crosta que ganharam e isso talvez as torne um pouco mais suportáveis. 
É muito sentida a passagem do tempo no próprio poeta, que constantemente nos lembra o fim da vida e a caminhada que o demanda, o entardecer, palavra que titula um dos últimos poemas [Entardecer] e avisa Eu nunca fui a Bagdad / mas dizem-me que a morte / anda à minha procura [Bagdad]. Ele inclui-se entre os que entardecem verdadeiros condenados [Carta à Neta]. É verdade que chega a queixar-se que tarda a entardecer [Tarda a entardecer], mas nem por isso deixa de acusar os espelhos como instrumentos de crueldade, lamentando Olha como dói olhar-te / com rugas no sorriso / e tantos cardos na palavra / que mais parecemos feridos / de regresso a casa [Fim de Estação]. Mas esse é um alimento que temos de comer, não temos alternativa come o / sofrimento do Inverno. Convalesce / na sabedoria dos que morrem / encadeados com a luz da noite. / ... / A longa trança do vento ao crepúsculo nos estrangula. [Fim das Estações].
São muito importantes as mulheres para Pedro Castelhano. Elas são as únicas nomeadas, Beatriz, Ângela, a Mãe, onde também cabem as referências poéticas a Luiza Neto Jorge, o belo poema Sortilégio de Mulher e a homenagem a Natália Correia. São elas que estão vivas, são elas que resistem e sorriem / Mesmo quando a amargura lhes / Fere os lábios [Sortilégio de Mulher]. O futuro são as mulheres, elas como que tomaram o lugar dos deuses, embora sem o serem. Pois deus e os deuses ficam ao entre raiva e dúvida, entre acusação e redenção, entre um não crer e querer um fácil mas impossível acreditar. As folhas recolhem a brisa / e a árvore é a ultima sobra da tarde./ Nada nos resta na inquietude / com Marco Aurélio a pregar a indiferença / como se Heráclito fosse o mensageiro / em que se move a mudança. / Só que as mulheres passam mais / do que as águas do rio / e tornam a passar / estas pontes móveis que nos / aproximam da beleza. // Os deuses são os grandes causadores da tristeza. / Sacanas e dissolventes / Passam a vida a atirar-nos / Pedras, a nós, frágeis ferramentas / De carnes gastas pelo tempo [Entardecer].
O futuro é Beatriz: tu és a crença e a minha / senha para qualquer outro lugar. É tempo de ela tomar o lugar Os / que já entardecem saúdam-te [bonito eco do clássico morituri te salutant dos lutadores da arena diante de César]. / Vá, acorda, começa a madrugar. [Carta à Neta]
Esta poesia mostra que estamos presos ao poste da memória e que, ao invés do que sugere ou gostaria o poeta, não há amnésia. Há cordas que amarrem a alma / ao poste da memória e te obriguem a confessar a tua profunda / amnésia? [Nove poemas de Novembro, IX]. O problema da rápida passagem do tempo, a brevidade da vida, levam o poema a interrogações dramáticas: Há tempo para amar ainda quando o resto é tudo / tão breve? [Nove poemas de Novembro, IX]. O tempo nada perdoa / Porque não há tempo / O tempo passa sem nós / Nós é que passsamos com tempo. [Tarda a Entardecer] ocupas a noite com a memória... podes perpetuar a ira como a única saída para a noite [Carpe diem]
Mas nem tudo é passado, pois o presente interpela o poeta e ele não resiste. É uma casca fina a barragem que separa os tempos e acena com a indiferença. Por isso proclama que Chegou a hora de exigir tudo [Femina, Femina], ou Serenos como a sintaxe, / abolida a ira, / recomecemos a descrença, deitando fora a medíocre grandeza / do bastidor [Pega de Estaca], e o nome de Bagdad nos lembra a mãe de todas as batalhas [Bagdad], desafiando o niilismo Sei que não é tarefa fácil / desafiar o Nada [Não quero que te canses], mas também o Iraque, o Afeganistão, a Palestina que nos convida a visitar Com o saco cheio de Nada /... / Pode ser que por tanto Nada / algo te queiram dar: / um filho, um sorriso, talvez luar [Quando o Natal Chegar]. E à boa maneira de Horácio[2] conclui que Já não abundam loucos / já ninguém atira pedras / ao vento / nem recita versos de amor / na esplanada. [Há horas] Mas também é possível descortinar ambiguidades por cujas frestas se assoma um certo fim da história, o fim de certos mundos, a presença do apocalipse.
Há nesta poesia uma fuga para o branco, para a luz para as costas brancas do silêncio [À procura da Luz (I)], da claridade que o tempo embaciou [Aniversário], das mulheres encharcadas em branco ... a efémera brancura da palavra [Montanha]. A luz é o contraponto da cegueira. É branca a camisa dos que vão ser fuzilados [À Hora]. Uma poesia que pede luz e horizontes, agarrada que está à cegueira como uma obsessão: Roubaram-nos a lucidez dos cegos [Tanta Fúria] a noite é o princípio da cegueira [Nove Poemas de Novembro, VII]. Os filhos cresceram / E a azeitona continua / A cair / Nos campos brancos da / Madrugada [(Re)Cantos IV]. São dois os poemas com o título À Procura da Luz, escritos como cartas a alguém, como se um foco de luz penetrasse na cegueira / e dispensássemos os deuses de saber quem somos [À procura de luz]. 
É esta uma poesia tecida de silêncio, fio a fio: Tanta fúria que escorre dos silêncios [Tanta Fúria]. A noite é a rosa negra / do meu silêncio / mãe dos cegos / e de todos os que já estão /cansados de ver.[Nocturno] Aqui, nas costas brancas do silêncio, escrevo-te / em surdina, não vá o silêncio acordar. Pois é o silêncio a suprema arte [À Procura da Luz (II)]. Sabe o poeta que ainda poderá viver tempos em que se pode enlouquecer normalmente [Tempo de enlouquecer]. Digam-me como e se é possível ler esta poesia atravessada pelo silêncio, em que a principal função das palavras é calar esse silêncio e, assim, não sentir tão ágeis as leves passadas do entardecer.
Sinto uma grande afinidade com este poeta em muitas coisas, e não é só no mito do Manquinho de Açoreira ou numa certa loucura de atirar pedradas aos deuses, um certo percurso, a amizade já velha. Vejam lá que também eu embirro com óculos escuros e uso lentes progressivas [Quando eu morrer por favor apaga a luz...]. Mas sinto-me agora mais orientado na minha geografia, com menos risco de me perder, pois se ergue agora um novo marco geodésico a interpelar os caminhos e o tempo. E como o poeta diz à sua neta Beatriz, também eu lhe digo O tempo que demoraste aqui chegar! [Poema à Neta] Uma vez chegado, a nordeste de tudo, poderemos encher o saco de Nada [Quando o Natal chegar], talvez de poemas que nos guardem a dose de loucura de que precisamos para viver, marcos na geografia da memória que nos sirvam de referência no voo do entardecer.

Moncorvo, 19 de março de 2011

Amadeu Ferreira


Rogério Rodrigues, (Re)Cantos d’Amar Morto, Editora Âncora, 2011

[Notas de apoio à apresentação do livro, em Moncorvo, no dia 19 de março de 2011, às 15 horas.]




Texto  do Rogério:
O Amadeu já disse tudo ou quase tudo. Até exagerou, pela positiva, na minha carpintaria poética, hoje que é dia de S.José. Mas esqueceu-se de uma reflexão que eu vou buscar ao meu dilecto Jorge de Sena, ainda que não em citação literal: a poesia é inútil, mas não conheço nada de mais importante.
O poeta também tem o direito à heresia numa sociedade em que o sucesso é mais procurado do que a realização.
Prometo ser muito breve, porque não quero que me julguem pregador em causa própria.
Estes poemas são os alicerces do Tempo para a construção do meu templo interior, construção que estará sempre incompleta, mas de que não devo desistir.
Às vezes a linguagem é agressiva, mas um solitário solidário (conceito roubado a Camus, um dos meus mestres) guarda sempre no bolso uma palavra de ternura para atirar aos outros.
Lembro aqui um episódio ocorrido entre Miguel Torga, poeta que não admiro particularmente, talvez para escândalo de muitos, e a Jovita, sua colega médica. Protestava a Jovita: Adolfo (nome de Miguel Torga) porque é que estás sempre a meter-te comigo. E Torga, de andar desengonçado entre o camponês e o caçador, respondeu: É ternura, sua bruta.A análise que eu pudesse fazer sobre este livro, um substrato da espiritualidade que ainda hoje me povoa, seria em grande parte coincidente com o texto do Amadeu que me conhece há muitos anos, descobre o caminhos das ratoeiras e percebe como a palavra é geradora de conflitos e insurreição ao normativo. Não obedece à virtude kantiana, antes à iluminação ou atemporalidade de Holderlin e Rilke, os meus queridos mestres que pude ler em tradução rigorosa de Paulo Quintela.

E não esqueço neste desfiar de referências, o meu livro de cabeceira, Quatro Quartetos de T.S. Eliot, o Assis, o O’Neill, o Rui Belo, o Sena, o Pires Cabral ( aconselho vivamente os seus últimos livros Têmporas de Cinza e Arado), o Carlos Drummond de Andrade, e o Pessoa e o Herberto Hélder, obviamente.
A minha família poética é mais de iluminação do que de intervenção, na obstinada procura de espaços interiores, na procura da Luz e no elogio da pedra, fundamentais para a construção do templo de cada um.
Para quem tiver a pachorra de ler este livro, recomendo, antecipadamente, não vá cair no engano, um provérbio chinês. Assim: tolera que a ave da melancolia pouse nos teus cabelos, mas nunca permitas que faça ninho na tua cabeça.
Saúde e Fraternidade.
Obrigado a todos.
Rogério Rodrigues

Na primeira fotografia :dr.Amadeu Ferreira,dr.Rogério Rodrigues,eng. Aires Ferreira ,drªHelena Pontes e o editor,dr.Batista Lopes

7 comentários:

  1. Nove poemas de Novembro (IX)

    "........
    ...Há navegações ocultas de que nem tu suspeitas no último adeus
    em que acordaste? Há o Homem por trás da cortina da tua casa
    desabitada? Há gritos repartidos pela vontade de gritar, quando calas
    o próprio silêncio? Há fontes e nascentes e cavalos e portos
    quando a condição de ser te prende? Há canções ao fim do dia? Há
    que tempos te procuras e não sabes que só a morte não é Interrogação?!]


    Como se navega por mares serenos e revoltos,
    como se grita no silêncio dos dias,
    como se saboreia a paz, se bebe nas nascentes e se interroga a vida e a morte.

    Pela amostra que Amadeu Ferreira colocou no seu blog,(Cumo quien bai de Camino) dos poemas de Pedro Castelhano, abre o apetite para sorber o perfume dos poemas que cheiram a amendoeiras em flor.

    Parabéns ao autor

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  2. (Re)Cantos II

    Eiqui, ne ls subúrbios de la flor
    antre yerbas malas
    i l atenegrado maçcarado
    de Primabera amansada
    eiqui, até l lhadrar de ls perros
    ye poluído. Mas que ternura ye esta,
    nun me dezirás? Eiqui, até la metáfora
    faç quemido de l stierco de ls dies.

    Pedro Castelhano

    in "cumo quien bai de camino"

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  3. sem precisar de pedir licença para entrar no céu da poesia, pois lhe diz como São Pedro à Irene de Manuel Bandeira: Entre Irene (Rogério, Pedro): Você não precisa pedir licença [Manuel Bandeira, “Irene no Céu”].
    E eu que estava no meu canto esperando pelo convite, aceitei o que nos enviou Amadeu: "entrem !não precisam de pedir licença".E entrei nos recantos abandonando o meu canto. Obrigado, Amadeu. Agora, ando entre o mar morto e a vilariça ,entre as ruínas do interior e o xisto/granito. Cruzei com o Torga que saía e ouvi/vi a gargalhada da Natália à quadra do Pessoa. Caminho ao amanhecer para as fragas/MONTANHA .Ou desço? Leio sem ordem, do fim para o princípio, do meio para a frente...ando à volta, neste circular sem fim ,caminho para o centro do vulcão .As bolhas à superfície rebentam junto a mim. São migalhas da memória…Volto ao Guia /roteiro do Amadeu. Onde estou?Perdi-me?Estou dentro de mim.Este é o meu reino com memórias do futuro nos socalcos do passado/presente. Transmontaneidade….Volto ao princípio ou ao fim?Sigo a sombra de Sisífo….Creio que estou a enlouquecer.Merda ,sou lúcido!Serei?Volto ao guia,volto ao principio .Leio que começou a betonagem da barragem do baixo Sabor .O mar morto do nosso vale betona-se com palavras ,com versos…A minha EDP chama-se PEDRO CASTELHANO.
    M.C.

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  4. Creio, tenho a certez, que foi Lorca que escreveu um belo texto sobre "el duende".
    É um conceito dificil de explicar em tão curto espaço.
    O poeta granadino aplicava-o às "cantaoras" de flamengo (no principio era só o 'canto jondo', não havia baile...).
    "El duende" era uma espécie de génio que possuia o cantor/cantora uma única vez em vida artistica e lhes permitia "possuir" de modo raro e espesso a plateia que os escutava.Momento irrepetível.
    O que ocorreu no salão da Biblioteca Moncorvense, no pretérito dia 19 de Março, foi da dimensão do "duende" lorquiano.
    Depois da longa comunicação de mestre Amadeu Ferreira, após a curta, quanto impressiva fala do poeta Pedro Castelhano, dito Rogério Rodrigues, a assistência ao acto, que era bastante numerosa, levantou-se e ovacionou, longamente, o vate do Peredo dos Castelhanos, como se tivessem acabado de assistir a uma perfomance musical, ou operática, daquelas que nos arrrebata a alma e nos marca de modo perturbador.
    Tanto o critico, apresentador do poemário, como o poeta, ele mesmo, no passado Sábado, foram visitados por "el duende" lorquiano.
    Que este nunca se aparte deles, para bem e prazer de todos nós, seus leitores e ouvintes.

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  5. "O Amadeu já disse tudo, ou quase tudo", foram as palavras de Pedro Castelhano no final da apresentação de "(RE)CANTOS d'AMAR MORTO", por Amadeu Ferreira. Fora sobretudo o diálogo de um poeta com outro poeta. Mas esse diálogo transbordou para todos os presentes. No momento mágico em que nos levantámos para ovacionar o poeta e o apresentador, uma amiga minha, entre o espanto e o deslumbramento, sussurrou-me: "Nunca vi uma apresentação que se parecesse com esta". Respondi: "Eu também não".
    Por mim, logo que me vi com o livro na mão (e com uma dedicatória que, de todo, não mereço), folheei-o para encontrar um determinado poema.
    Vou explicar: num dia da apresentação de um qualquer livreco meu em Moncorvo, o Rogério não pôde estar presente. Mas, atento e amigo, enviou-me dois poemas "Stabat Mater" e "Femina" para que eu escolhesse um e o lesse. Li o primeiro e, ao terminar, vi os olhos da minha irmã e de outras mulheres de idade, e mesmo os de algumas jovens, marejados de lágrimas. Vi os homens que engoliam em seco, fazendo a "maçã de Adão" subir e descer. Foi um momento único: a asa do milagre tinha pairado na sala.
    Tempos depois, num dia 8 de Março - Dia Internacional da Mulher - na sala da Biblioteca da Marinha Grande, foi apresentada por Graça Abranches a 1ª edição do livro "Mulheres da Marinha Grande - Histórias de Luta e de Coragem". No final, chegou o momento de eu dizer umas quantas palavras. A verdade é que achei que a apresentadora já havia dito tudo. Então lembrei-me dos poemas do Rogério que ainda trazia dentro da carteira. Desdobrei a folhinha da poesia "Femina", disse o nome do autor e li o poema. A ovação foi estrondosa.
    Creio que nunca contei ao Rogério. Conto agora.
    Muito mais poderia dizer: por ex.: que "Carpe Diem" me deixou sem fôlego; que a "Carta à Neta" me fez cair em deslumbre; que o poema VII dos "Nove Poemas de Novembro" me abalou ....
    E tanto, tanto mais há para dizer. Mas mais ainda para sentir.
    Obrigada, Rogério.
    Obrigada, Amadeu.

    Abraços,
    Júlia

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  6. Fui eu quem disse (em voz baixinha) para a minha amiga Júlia, que essa apresentação foi diferente de tudo o que conhecia em matéria de apresentações de livros. Fiquei encantada com a sessão e mais ainda com os poemas, que já comecei a ler. Tal como diz Mendo, também leio sem ordem e nem acho que ela seja necessária. Dos poemas que li, destaco "Há Horas" , nem eu sei bem porquê. Mas tocou-me profundamente. O primeiro poema "Carpe Diem" despertou em mim tantos sentimentos, talvez até desencontrados, que não sei definir. As minhas palavras não chegam ...
    Muito obrigada ao poeta e ao apresentador.

    Julieta Fernandes

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  7. Laivos de Cultura Transmontana (I)
    Barroso da Fonte

    Sétimo: Por onde tem andado
    este paladino da palavra
    certeira e da escrita fluente que
    fez furor nos primeiros anos da
    revolução de Abril e que reaparece
    hoje, como poeta, por
    troca com a prosa que fez tremar
    nos matutinos e semanários
    mais temíveis dos anos
    setenta/oitenta? Nasceu em
    Torre de Moncorvo, frequentou
    a Universidade, mas derivou
    para o jornalismo de longo
    curso. Ao lembrá-lo invoco
    outros grandes da sua geração
    de notáveis jornalistas: Afonso
    Praça, e Ernesto José Rodrigues.
    Mas esta nota especial
    vai para Rogério Rodrigues,
    que assina estes (Re)cantos d’
    Amar Morto com o pseudónimo
    de Pedro Castelhano. Um
    nome sólido nas palavras prosaicas
    e/ou poéticas como o
    granito da nédia serra do Marão.
    Com a chancela da Âncora

    Publicado no Jornal A Voz de Tras-os-Montes de Vila Real

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