sábado, 8 de março de 2014

DIA INTERNACIONAL DA MULHER (Em sua homenagem,reeditamos textos das nossas colaboradoras)

QUANDO O SILÊNCIO SE ABATE, por Arinda Andrés
URROS 1947
Eu era ainda criança, e mesmo em frente à nossa casa, aquela figura que se recortava na luz calma e suave, sobressaía na faina de uma aldeia buliçosa e cheia de esperança. O homem avançava devagar, enquanto a tarde se aconchegava nos poiais cinzentos e seculares de muitos e muitos anos; as passadas lentas e arrastadas, evidenciavam, na rua larga e a pulular de gente, de trabalho e de sonhos, a figura alta e de corpo gingão daquele homem tão diferente, aos meus olhos, de todos os outros. Nunca o vi sair de casa; apenas o via chegar, sempre só e distante de tudo. Era um rosto de expressão dorida, raras vezes o vi falar com alguém. Grupos de gente aqui e ali, eram-lhe indiferentes. Subia determinadamente as escadas íngremes da casa que o aguardava, numa cumplicidade tão robusta quão fortes e bem alicerçadas eram as suas raízes. Outro mundo, outra gente. Em silêncio, a chave rodava na fechadura e, lentamente, a porta ronceira ia deixando entrar alguma luz estranha, testemunha de outros tempos, no negrume do interior da casa. O homem entrava e a porta, sozinha, fechava-se.
Era uma figura estranha, aquele homem. Tinha um olhar parado e lento, como se não visse nada nem ninguém mas, ao mesmo tempo, os seus olhos pareciam voltar-se para outras pessoas, outro lugar. Na mão, habitualmente, trazia uma sacola, uma taleiga, que era de pano às riscas como a de qualquer homem, ou de qualquer mulher. Intrigava-me aquela figura, ao querer enquadrá-la em hábitos, relações, circunstâncias, como aos outros. A rotina era sempre a mesma. Mas, naquele dia, ele estava ali, entregando-se inteiramente ao seu trabalho; a madeira ia-se esculpindo, lentamente, enquanto uma plaina certeira, ia e vinha, criando-se um ar de mistério, como se a certeza e o destino das coisas dependessem, absolutamente, daquele momento; minha mãe trouxe-lhe um prato de comida; o homem, sem dizer palavra, aceitou. Religiosamente o diálogo estreitava-se em secas palavras :«Agora, são horas de ir para casa», disse.
A aldeia amanhecia no trabalho dos campos e anoitecia no conforto pacato das lareiras, onde os mais velhos cogitavam sobre a sorte dos mais novos, enquanto as labaredas cresciam e as brasas, reduto de imponentes árvores, se consumiam em cinzas apenas, depois de aquecer a humidade fria dos dias de inverno; ou nos balcões e varandas, aliviando as noites abafadas do calor do verão.
Os dias iam-se acomodando na rotina do sol ou da chuva, das sementeiras ou das colheitas. Os machos que, briosamente, carregavam sacos de azeitona ou amêndoa, ainda permanecem na minha memória, e a cadência dos sinos, ao toque das Trindades, devolve-me a visão de tardes calmas e sossegadas, porém, exalando a luz ténue e lenta de tempos bem distantes.
Já o sol se fora e, numa dádiva de Deus, entregara os últimos fios de ouro à pacatez dos rebanhos, a recolher mansa e humildemente às malhadas; ao terreiro, da garotada a jogar ao lencinho, ao pico-pico, ao meco e ao castro, enquanto os rapazes saltavam ao eixo e na taberna, em busca de uma recompensa perdida, esquecida, ou simplesmente adiada, afogava-se a dor com um último copo de vinho; nas pedras cinzentas e frias das eiras derramavam-se os últimos raios de sol, agora a esconder-se nos molhos de trigo, seco, louro, de cevada ou de centeio; as galinhas acorriam em bando ao cair do trigo, nas lajes de uma ceifa farta e opulenta; os gatos enrolavam-se ao sol com o medo dos cães, nas orelhas espetadas; e a esperança dos pardais, nos olhos e no focinho, de pelos afiados, em riste.
URROS 2010
No calendário do meu quarto os dias contados pelo lápis, tinham-se esgotado.
E as minhas férias também chegaram, depois de longos e longos meses de ausência.
Não vi o homem e minha mãe explicou-me, «Vivia sozinho, não tinha mulher nem filhos; era um couraçado de trabalho e abandono. Noutros tempos era mau; tinha mau feitio. Agora, sem mulher e sem filhos, parece que andava sempre a entregar a alma a Deus; era um desgraçado; não fazia mal a uma mosca, ainda bem que Deus o levou».
Arinda Andrés (Tininha)

11 comentários:

  1. Olá Tininha, esta delicia Literária é fresquinha, ainda por cima é do meu mundo, pois como sabes conheci a personagem,"Onamreg",é fantástico ler o que desconhecemos, mas muito mais interessante é ler a realidade transformada em ficção.
    Parabéns.
    Momentos antes deixei um comentário em resposta aos teus.
    Um beiginho de apreço e amizade.
    Manuel sengo

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  2. Olá, Tininha :

    Bem aparecida, mais a sua bela prosa.
    Não faça ausências tão longas.

    Bj.
    Júlia

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  3. Regressou a Tininha com as suas memórias da infância: o mundo da aldeia e as personagens "estranhas" que a povoam.Também digo: bela prosa!
    Beijinho.

    Uma moncorvense

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  4. Olá minha querida amiga Tininha!De bel que é o teu texto faltam-me as palavras para o comentar...Não me recordo do personagem,mas estou certa que um dia falar-me-ás dele...O jogo do lençinho,do eixo descrito com tanta mestria e fantasia faz-me lembrar o meu e teu tempo de meninas.Um bj,dois bjs tantos quantos queiras aceitar.Ireninha

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  5. Olá meus amigos, obrigada por este tempinho de partilha!
    Obrigada Manuel e Ireninha, amigos da minha rua!
    Um beijinho para todos,
    Tininha

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  6. Oh..Encantador!E,eu a contar ao meu neto que também vivi esses dias de mão dada com a minha mãe a esconder as lágrimas que acabavam por cair no lençinho com bonecos.Beijinhos.Ireninha

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  7. Ireninha (Urros) disse...
    Parabens Tininha!Gostei muito Continua e não fiques acachadinha no cantinho do borralho.Beijinhos. Ireninha (Urros)

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  8. Olá Julinha! Pois fique sabendo que tenho estado sempre no blogue. Eu já nem consigo viver sem estes Farrapos!
    Para uma moncorvense, obrigada pelas bonitas palavras, as de sempre!
    Beijinhos amigos,
    Tininha

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  9. Olá Tininha!Não sei se já deste conta que andam para aqui comentários trocados,mas são todos para ti pelos belos textos com que nos tens prsenteado.Beijinhos da Ireninha

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  10. Olá prima, as tuas prosas e poesias despertam em nós a saudade e dão-nos alento!Fazem-nos muito bem...continua.Parabéns.
    Urros e as nossas vivências estarão sempre no nosso coração. É bom lembrar o que fomos, continua a despertar na nossa memória a simplicidade/cumplicidade, desses tempos. Fiquei contente por ver que os vizinhos e amigos da nossa rua continuam unidos por belas recordações.Xi-Coração e BOM ANO para todos.

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