terça-feira, 13 de agosto de 2013

MOGADOURO – 1544 ,por António Júlio Andrade e Maria Fernanda Guimarães

Ana “Doce” traída pelo Mestre Valença
Com a publicação dos decretos de expulsão dos judeus, ficou proibido o uso da língua hebraica e até as pessoas tiveram de abandonar o seu próprio nome e adoptar outro, que fosse cristão. Geralmente adoptaram o nome do padrinho/madrinha.
E meio século decorrido, embora as pessoas continuassem no interior de suas casas a fazer cerimónias judaicas, tais cerimónias e ritos e orações iam sendo esquecidas e eram adulteradas. Estavam, geralmente, muito pouco de acordo com as normas rabínicas. E muito poucas eram já as pessoas que tinham verdadeiros conhecimentos bíblicos e sabiam quando calhavam as festas, na roda do ano, segundo o calendário judaico.
Entre essas poucas pessoas, ganhou celebridade o dr. António de Valença, morador no Mogadouro, médico da família Távora. A tal ponto que, não apenas os da sua nação, mas até os próprios inquisidores o tratavam por “Mestre”. E por isso mesmo lhe pediram que passasse a escrito a relação e o significado das diferentes festividades, a data em que se realizavam, as cerimónias, ritos, orações e tudo o que significasse comportamentos e atitudes judaicas.
Neste aspecto e para utilizar a linguagem dos nossos dias, podemos dizer que foi ele quem deu formação profissional ao primeiro corpo de inquisidores, durante os cerca de 4 anos que esteve preso em Évora (1544-1548).
E acabou também por ser o grande denunciante de seus correligionários. Mais de uma centena de cristãos-novos foram denunciados por ele na Inquisição, como judaizantes. E não apenas de Mogadouro, mas de muitas terras de Trás-os-Montes, província que ele percorria em pregações clandestinas. E a estima e confiança que todos tinham nele foi depois a perdição dos mesmos.
Como aconteceu com Ana Doce, ou melhor, Ana Fernandes, a doce, de alcunha.
Com efeito, na audiência de 13.9.1544, Mestre Valença confessou que Ana Doce costumava perguntar-lhe quando caíam as festas e jejuns, nomeadamente do Kipur e da Rainha Ester, para os guardar.
Este foi um dos testemunhos que levaram á prisão daquela mulher, natural do Mogadouro, casada com Afonso Garcia, cristão-novo, originário de Fermoselhe, Castela.

Encarcerada em Évora, tratou de se defender. E, naturalmente, pôs-se a pensar quem poderia tê-la denunciado à Inquisição. Certamente foi alguém que lhe queria mal. E só uma pessoa lhe vinha à cabeça. Só ela poderia tê-la metido em tais trabalhos – uma viúva que era directora ou governanta do “Sprital” do Mogadouro, com quem tinha discutido e “pelejado” por causa de uma gamela. E, no ardor da peleja, ela a ameaçou que havia de “fazê-la prender pela Santa Inquisição”. Por arrastamento e de igual modo desconfiava do filho da “spritaleira” e do padre que no “sprital” dava assistência.
Ana Doce dizia aos inquisidores que era mentira, que ela não guardava as festas dos judeus, nem o sábado, nem nunca jejuou naqueles dias e ao modo dos judeus. Aliás, nem sabia como era esse modo de jejuar dos judeus.
Diziam-lhe os inquisidores que pensasse bem e dissesse a verdade, que era melhor. Respondia que tudo era uma invenção da “spitaleira” e do filho e do clérigo, que lhe queriam mal e escolheram a mentira e a calúnia para se vingar dela.
Era o dia 21 de Agosto de 1545. Na “casa do despacho” da Inquisição de Évora, o manhoso inquisidor Pêro Álvares Peredes apertava com Ana Doce para que ela confessasse que perguntava quando eram os dias de festa para os celebrar com jejuns. E Ana continuava negando e desafiava “que não havia pessoa alguma que tal coisa lhe dissesse a ela no rosto”.
Aí, o inquisidor fez sinal para um funcionário que logo abriu uma porta e por ele entrou o Mestre António de Valença.
Reza a acta da sessão que “António de Valença (…) tanto que viu a dita Ana Fernandes Doce, a abraçou e ela o abraçou a ele Mestre António perguntando um ao outro como estava”.
Seria um matar de saudades, um estranho momento de ternura, um motivo de alívio no calvário das masmorras. O encontro com o Mestre seria para ela uma doce consolação dispensada pelo Deus dos Judeus.
Imaginamo-la ainda embevecida e olhando o Mestre que tanto considerava e em quem depositava inteira confiança. E imaginamos o seu rosto a ficar branco e o sangue a gelar-lhe nas veias, enquanto ele ia dizendo:
- Que tinha confessado seus pecados e culpas e tinha pedido misericórdia e que a admoestava da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo e da sua, e lhe rogava que ela confessasse tudo aquilo que tinha feito contra a nossa santa fé católica, porque ele mestre António tinha dito nesta Inquisição o que ela sabia.
Atónita, a Doce respondeu que não sabia coisa nenhuma, que nada tinha a confessar. E o Mestre lembrou-lhe que muitas vezes ela o procurara para lhe perguntar quando eram os dias de festa para jejuar…
Ana arregalava os olhos espantada e dizia que o Mestre só podia estar a “zombar” com ela. E desafiava-o a que a olhasse de frente na cara e repetisse o que dissera e que jurasse sobre os santos evangelhos. E o dr. Valença “tomou logo o livro dos santos evangelhos que estava na mesa ante o senhor inquisidor e lhe jurou nos ditos santos evangelhos uma vez e duas que ela Ana Doce lhe perguntara pelos ditos jejuns e festas dos judeus”.
A Doce terá então percebido que o mestre se tinha mudado, que não era mais aquela pessoa digna de estima e de respeito, mas um renegado cristão. E nem assim, perante uma tal evidência, ela se deixou ir abaixo. Em vez de confessar e pedir misericórdia, argumentou:
- Que bem podia ela perguntar a ele Mestre António por alguma mezinha para algum dos seus filhos que tivesse doente com lombrigas (…) que ela nunca tal coisa perguntara ao dito mestre António como ele agora dissera.
Gorada esta tentativa de levar a Doce a confessar seus crimes e a pedir misericórdia e perdão, o inquisidor Paredes mandou levar o dr. Valença para a sua cela. E voltou à carga, mais uma vez tentou convencer Ana Fernandes. Ela respondeu que não compreendia aquela atitude do Mestre António mas… podia ser que ele, por alguma razão, lhe quisesse mal, que o desculpassem por estar a mentir sobre coisas tão sagradas.
De regresso à sua cela, Ana Fernandes terá pensado como foi injusta ao atirar para cima da “spritaleira” do Mogadouro a causa de sua ruína e disso pediria perdão ao Deus uno e não trino, o Deus que fez o céu e a terra e tudo quanto neles há. Como desejaria não ter caído nos braços do renegado António de Valença e dele continuando a guardar a imagem do “Maese” que ensinava as Escrituras ao povo de Deus!
 Em simultâneo, pediria ao mesmo Deus que a mantivesse viva e lhe desse saúde para voltar a abraçar o seu marido que, antes dela viera preso para a mesma cadeia de Évora, talvez denunciado pelo mesmo. Na cadeia nunca tivera oportunidade de o ver e não sabia se estaria vivo. Nós sabemos que estava, pois a folhas 34 do mesmo processo lemos o seguinte, referido a 7 de Maio de 1548:
 Afonso Garcia disse que estava enfermo e mal disposto e o inquisidor disse-lhe que se ele desse fiança de 150 cruzados, o entregavam para morar fora, mas que tinha de se apresentar todas as vezes que fosse chamado.
Porém, a denúncia feita pelo Mestre Valença não foi a única, nem sequer a primeira. E os jejuns judaicos não eram o único crime cometido por Ana Fernandes. Mais de um ano antes, dois outros “amigos” tinham ido metê-la na Inquisição. Vamos contar.
Em Mogadouro os cristãos-novos costumavam juntar-se em sinagoga na casa de Francisco Vaz, que tinha uma torah, a bíblia dos judeus. Era aí que Mestre Valença explicava as escrituras sagradas e ensinava a religião de Moisés.
Pois, no dia 5 de Julho de 1543, um Gaspar Dias, alfaiate e tosador do Azinhoso, apresentou-se voluntariamente na casa do padre Cácares, na vizinha aldeia de S. Martinho do Peso, onde se estava fazendo um inquérito, por ordem do cardeal D. Henrique, em nome da Inquisição e, entre outras declarações, “disse que Ana Fernandes era judia e que cria na lei de Moisés. E isto o sabia porque lhe diziam umas certas pessoas que a viam na sinagoga, onde todos se ajuntavam”. Meses depois, em 2 de Setembro de 1543, estando preso na cadeia da Inquisição de Évora, o dito Gaspar ratificou aquelas declarações, à frente dos inquisidores.
No mesmo sítio de S. Martinho do Peso, 4 dias depois, em 9 de Julho, apresentou-se Diogo Henriques Franco e confessou que Ana Doce e o marido eram também judeus, que frequentavam a sinagoga e davam esmolas para a “sedaca” (um fundo de apoio aos mais pobres). Isto para além de guardarem o sábado como dia santificado e de acenderem as candeias mais cedo na sexta-feira e as deixarem até se apagar por si. Acrescentou Diogo que “isto o sabia ele por ser vizinho chegado”, em Mogadouro.
Henriques Franco foi também preso e encarcerado em Évora. Aí, no dia 22 de Abril de 1545, foi chamado à mesa para confirmar aquelas declarações e disse mais que as fizera “por descargo da sua consciência e não por ódio ou inimizade nem à dita Ana Fernandes nem a seu marido”.
A propósito destes dois cristãos-novos malsins, refira-se que qualquer deles denunciou cerca de uma centena de correligionários da região, tal como o Mestre António de Valença.
E estas foram as testemunhas que meteram Ana Doce no tribunal da Inquisição de Évora. Duas que viram ela judaizar, uma outra que ouviu dizer…
Vimos já como ela tentou defender-se das acusações daquele mestre do judaísmo. Vejamos agora como ela contraditou o testemunho de Diogo Henriques Franco, já que a de Gaspar Dias era menos relevante.
Desacreditar o Franco foi a táctica usada pela Doce. Esse homem não merece um mínimo de crédito – dizia ela. E para o provar só precisou requerer aos inquisidores que mandassem vir do escritório do tabelião António Pegas, de Miranda do Douro a cópia de uma sentença proferida contra o dito Henriques Franco. Aliás, acrescentou Ana, foi por causa disso que ele deixou a sua terra natal e foi viver para Mogadouro.
Por aquela sentença, veriam os senhores inquisidores que aquele homem era um ladrão da pior espécie e por isso “foi sentenciado que lhe cortassem as orelhas e fosse açoitado publicamente e degredado; e que, estando para se fazer a execução, ele fugiu da cadeia”.
Acederam os inquisidores e, em 4 de Julho de 1545, apresentou-se em casa do juis de fora de Miranda do Douro um tal João Lopes, morador no Mogadouro, com uma carta assinada pelos inquisidores Álvares Paredes e João da Silveira, pedindo cópia autenticada daquela sentença, o que logo se cumpriu.
Acusado de arrombar a porta de uma casa, Franco foi julgado pelo juiz de fora de Miranda, que o condenou em pena de degredo de 6 meses fora da vila e termo de Miranda e custas do processo. O queixoso recorreu desta sentença para o Desembargo do Paço que a agravou. Antes de ir cumprir o desterro, Diogo Henriques devia ser preso com uma corda ao pescoço, puxado pelas ruas da vila, ao mesmo tempo que se ia apregoando o seu crime e se lhe davam açoites.
Mas vejam a cópia da sentença, que ela é bem clara e a prosa bem saborosa:
- D. João, por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves d´aquem e d´além mar em África, senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia e da Índia; a vós juiz de fora por mim, com alçada na vila de Miranda, saúde. Fazemos saber que diante de nós, nesta minha Corte e Casa da Suplicação dos meus agravos, veio um feito crime de apelação que perante vós ordenou para bem da justiça, contra Diogo Henriques Franco, réu preso na cadeia e prisão dessa vila, porque contra ele se dizer que entraram em casa de um Bartolomeu Bolanhos, arrancando-lhe o ferrolho e a fechadura e lhe tomar certas coisas de casa; e que tudo isto melhor e mais completamente era conteúdo no feito sobre o qual se apresentou; tanto que por vossa sentença condenaste o dito réu, que fosse degredado por 6 meses fora da dita vila e seu termo e nas custas.
- E apelando para mim por parte da justiça e o feito me foi trazido perante mim finalmente concluso; o qual visto por mim em relação com os do dito meu Desembargo, acordei que é bem julgado por vós juiz, em condenardes o dito Diogo Henriques Franco, réu preso.
- Mas por o condenardes em degredo e não condenardes em pena de açoites, não foi por vós bem julgado; visto como se prova por confissão própria o réu furtar as coisas conteúdas no libelo, mas não na maneira que nele se contém; e havendo respeito à quantidade do furto e à sua qualidade da pessoa do réu com o mais que pelos autos mostra, o condeno com baraço e pregão, pela vila seja açoitado; e o condeno nas custas.
- E portanto vos mando que, tanto que esta minha carta vos seja apresentada, o façam logo açoitar ao réu preso primeiramente por essa vila com baraço e pregão.
- E tanto que a dita parte for feita e o tornarão na cadeia e me enviareis dizer e fazei assento e instrumento público nas costas desta minha carta, para saber como tudo era satisfeito dela; e esta execução fazei-a vós juiz fazer o dia em que vos esta minha carta for apresentada ou ao outro dia seguinte o mais tardar, sob pena de 50 cruzados cuja metade será para os cativos e a outra metade para quem vós dotar; e o caminheiro que a levou se não virá dela sem me trazer certidão de como vos entregou esta minha carta; e todo o mais tempo que por ela esperar, lhe pagareis vós, da vossa conta, a 30 réis por dia.
- Dada nesta minha cidade de Évora, aos 18 de Agosto; el rei a mandou pelo licenciado Domingos Garcia, do meu Desembargo e ouvidor em a Corte e Casa da Suplicação. Francisco Pires a fez, por Belchior Lº escrivão de 1543.
Como se vê, o próprio juiz de fora devia imediatamente fazer cumprir a sentença régia, fazendo-a executar no próprio dia ou no dia seguinte, sob pena de ter de pagar 50 cruzados (20 000 réis) e 30 réis/dia por jorna ao portador da carta.
Deixemos o espectáculo público que era o castigo infligido a Diogo e voltemos a Évora, ao cárcere de Ana Doce que acabou por ser libertada em 5 de Junho de 1548, em virtude do perdão geral concedido pelo papa Paulo III a todos os cristãos-novos portugueses que então estavam presos pela Inquisição. Porém, já ela não estava encerrada nas masmorras, antes andava pelas ruas de Évora em “liberdade condicional” desde 25.2.1546. No instrumento de fiança que então se lavrou no mesmo tribunal, se diz o seguinte:
- Saibam os que este instrumento de fiança virem que (…) apareceu Salvador Vaz, mercador, morador em Lisboa e Diogo Pires, mercador, morador em Lagos e Mestre Francisco, cirurgião, morador em Faro e logo por eles foi dito (…) que eles fiavam e ficavam por fiadores e carcereiros da dita Ana Fernandes e tomavam por si de a entregar quando fosse pedida e ao dito senhor inquisidor entregaram os ditos 100 cruzados…
Como explicar que um cirurgião de Faro, um mercador de Lagos e outro de Lisboa se concertassem para pagar a fiança de 40 000 réis (uma fortuna) por uma mulher de Mogadouro presa em Évora?
Refira-se ainda que também eles eram cristãos-novos que se encontravam então “presos” na cidade de Évora pela Inquisição.
Tudo isto são pormenores muito interessantes para o estudo do funcionamento e da evolução do tribunal do Santo Ofício e da sociedade portuguesa daquela época.

Maria Fernanda Guimarães
António Júlio Andrade
FONTES
IANTT, Inquisição de Évora, processo 4637, de Afonso Garcia.

4 comentários:

  1. Fantástico!
    Antero Neto

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  2. Grande investigação e excelentes investigadores !
    Abração
    Júlia Ribeiro

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  3. Gomes Noelia escreveu:um belo acontecimento que desconhecia, parabéns...

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  4. Acabo de reler todo o processo de Ana "Doce" Fernandes (e outros processos pelo meio). E novamente louvo o vosso trabalho de investigação muito válido e de grande interesse.

    Abraço
    Júlia Ribeiro

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