domingo, 14 de maio de 2017

Peixes do rio, por Virgílio Nogueiro Gomes

Fotografia:Lb
Depois da crónica sobre peixes do mar, chegou a vez dos peixes do rio, e sua tradição na alimentação portuguesa. Por vezes também são chamados de peixes de água doce e, lamentavelmente, são muitas vezes classificados por ordem de “importância”, como por exemplo a lampreia, e relegando outros para referências menores, como a boga ou lúcio. Os peixes de rio estiveram sempre ligados a consumos locais pois o seu transporte implicava cuidados especiais e por se tratar de artigos facilmente perecíveis não serem partilhados por muitas regiões. Depois há outras espécies que foram introduzidas a partir do século XIX mas que nunca ganharam expressão significativa na alimentação portuguesa.

 Muito embora eu gostasse de não dar prioridade da escrita a nenhum peixe, sou obrigado a destacar a lampreia pela importância que lhe é atribuída por um grande grupo de apreciadores. Há também a lampreia do mar mas que tem a característica de se dirigir para os rios na fase de reprodução. Mas a lampreia que nos interessa hoje, é a de rio, e cujo consumo se encontra confinado aos meses entre janeiro e abril. Surge especialmente nos rios a partir do rio Minho até ao rio Tejo. A sua preparação exige cuidados especiais de sangramento e limpeza, e depois encontramos várias formas de confeção especialmente concentradas na região minhota. Curiosamente o modo de confeção mais vulgarizado é à “bordalesa” o que pode parecer estranho pois a designação significa à moda de Bordéus com os seus rios Dordogne e Garonne, de onde se conhecem receitas desde o século XIX, de vários autores célebres incluindo Cournonsky. Em Portugal atual, está a receita à bordalesa documentada em livros de Maria de Lourdes Modesto e Maria Emília Cancella de Abreu entre muitos. Trata-se de estufar a lampreia em vinho tinto e no qual se adiciona o sangue da lampreia.
A sua preciosidade, e o entusiasmo dos seus apreciadores, levaram a que a lampreia assumisse preços elevados durante o período atrás referido. Entre nós a primeira referência escrita sob a forma de receita é no caderno de receitas da Infanta D. Maria, século XVI, e que assemelha a uma lampreia estufada com especiarias. Domingos Rodrigues, 1680, brinda a lampreia com três receitas: assada, em conserva, e cozida. Cem anos depois, Lucas Rigaud já apresenta quatro: guisada para uma entrada, guisada com molho doce, assada nas grelhas e assada no espeto. Mas com lampreia também se faz um arroz “malandrinho” especialmente no Minho e região do Porto. O arroz é o acompanhamento mais habitual. Exceção para os transmontanos que colocam a lampreia sobre pão frito em azeite. Temos especialidades que variam pouco mas receitas com designação de origem como Entre-os-Rios, Fundão, Foz do Dão, Coimbra e Ribatejo. Também se faz lampreia de escabeche. Em meados do século XX temos a famosa “Lampreia à Eduardo Foz”, distinto epicurista com algumas receitas a ele dedicadas.
Outro peixe muito disputado é o sável. É também um peixe de inverno, habitualmente consumido de janeiro até finais de abril. As suas tradições estão especialmente agarradas no Minho e Ribatejo. No entanto a forma mais tradicional parece ser a fritura para depois ser coberta de molho de escabeche. Além de permitir evidenciar as suas espinhas para facilmente as retirar, ajuda à sua conservação. No Minho encontramos ainda o sável no espeto e ainda fumado, prática que está a cair em desuso. Na Beira Alta faz-se de escabeche mas, mais para sul, o sável é deixado a marinar em vinagre durante várias horas e o peixe só é frito depois de liberto das espinhas e serve-se com batata cozida. Mas no Ribatejo, a exemplo da fataça também se faz o sável na telha. Tradição ainda na zona ribeirinha do Tejo, de Vila Franca de Xira até Lisboa é hábito comer sável frito que acompanha com açorda de ovas do sável.
Ainda outro peixe que encontramos também na costa, e nos rios, é a enguia. Surgem especialmente nos rios entre o Douro e o Sado e tem o maior consumo e prestígio culinário na região de Aveiro. No entanto a sua divulgação deve-se ao incremento da sua criação em cativeiro. As enguias fazem-se de caldeirada, ou de ensopado, ou de fritura. Quando são de maior dimensão também se fazem na grelha.
Dos peixes de rio mais nobres também temos a truta. Foi, possivelmente, o primeiro peixe a que me habituei a comer. A truta gosta de águas frias e os meses de melhor sabor são janeiro, fevereiro, outubro, novembro e dezembro. Tradicionalmente a truta encontrava-se nos rios do norte do Minho, Trás-os-Montes, e Beiras até ao rio Zêzere. Lembro-me bem de aprender a apanhar trutas em covas pouco fundas, que enquanto criança achava um divertimento, e depois passei a considerar uma crueldade. Ainda hoje, se assisto à morte de um animal, peixe ou carne, tenho dificuldade em consumi-lo de seguida. Mas as trutas eram tradicionalmente fritas e regadas com um molho de azeite, vinagre e pimentão, ou então regavam-se com molho de escabeche para comer nos dias seguintes. Também se faziam embrulhadas em presunto entremeado, que lhe dá a designação à transmontana, ou abafadas na Beira Alta. Estas eram fritas em azeite com vinagre, pimenta, alhos cortados, louro, salsa e noz-moscada ralada. Depois de coinhadas colocam-se em travessa e cobrem-se com o líquido da fritura. Só se servem depois de ficarem em repouso, pelo menos, um dia inteiro. Curiosamente encontrei esta receita num texto de Luis de Sttau Monteiro, que considera esta receita fundamental para um bufete de peixes mas, para meu contentamento, apelidada de “Trutas Abafadas à Transmontana”. No rio Cávado têm uma receita que frita a truta em toucinho derretido, tendo-se colocado na barriga da truta um pedaço de presunto magro. Acompanha com batatas cozidas que se regam com a gordura de fritar. No século passado foi introduzida uma nova categoria de truta, a salmonada, que como o seu nome indica assemelha-se a carne de salmão. Penso que a sua criação apenas existe em cativeiro.
Mais peixes existem nos nossos rios: achigã, introduzida no século XIX a partir do rio Tejo para sul, e mais tarde nos rios Douro, Tua e albufeira do Azibo; barbo, nos rios entre o Minho e o Sado; bordalo, nos rios entre o Douro e o Guadiana; boga, nos rios entre o Minho e o Sado; carpa introduzida Europa Ocidental pelos romanos, apenas encontramos registos em Portugal no século XVI, encontra-se em quase todas as bacias hidrográficas até ao Douro, e mais tardiamente introduzida no Douro e Tua, e na albufeira de Azibo; e lúcio, desde meados do século passado nos rios Douro, Tejo e Guadiana. 
Mais alguns peixes faltarão mas com pequena expressão. Habitualmente estes peixes são fritos que acompanham com batata cozida ou arroz, sem registos de receituário divulgado. Cada localidade tem as suas receitas. Cada região deve orgulhar-se das suas receitas e continuar a confecionar de acorda com as tradições locais.
Vá escolhendo o melhor vinho para acompanhar pois assim o peixe saberá melhor.

 © Virgílio Nogueiro Gomes
Obrigatório ver:
Nota : a fotografia (Taberna do Carró, Moncorvo) é dos arquivos fotográficos do blogue.

4 comentários:

  1. Grande texto agora que se aproxima o festival do peixe na Foz.Adoro peixe do rio .No prato.

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  2. Maria Amélia Mourao escreveu: Os últimos que comi no passado dia 9 de Junho, estavam fabulosos, a companhia era a melhor e venham mais fins de semana como esse...

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  3. Victor Augusto escreveu :
    ò pá. Agora não sei onde ir comer esse delicioso petisco. A ultima vez foi na foz do Sabor e teve que ser por marcação. E aí vai mais uma história dos nossos bons tempos do Pocinho. Como aves noturnas que eramos, o nosso dia começava depois da meia noite, e (isto não se devia dizer, porque não sei se alguma vez esta história foi contada) juntamente com um entendido em pesca ( Sei que era um dos mais novos dos Socos das Cortes) iamos até aos choupos, onde estavam os barquitos do Horácio Peixeiro e do Sr. Edmundo, e , sem falar com os donos, pegavamos emprestado num barquito e na respectiva rede, que, normalmente estava lá estendida num varal ao lado do barco,e iamos até a quinta do Herminio para lançar a rede. Passados duas horas de amena cavaqueira, já tinhamos alguns quilitos de peixe que, no dia a seguir, o "tio" Alvaro nos preparava e que comiamos numa salinha que havia no café do Salomão. Que tempos, que saudades. Das gentes, do ambiente, da camaradagem e, claro, da juventude. Atenção-No final deixavamos tudo impecável como se ninguém tivesse mexido, nem no barco nem na rede.

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  4. Que cheirinho ! Que apetite! Que saudade !
    Júlia Ribeiro

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