terça-feira, 7 de agosto de 2012

Uma troca dos diabos !, por Júlia Ribeiro

Nessa noite, o Sr. Fidalgo, que era guarda republicano e vivia ao lado do terreiro, disse para a Sra. Amélia:- Conta lá um dos teus contos, aquele da mulher do tio Amâncio, que lhe pôs os cornos.
- Oh, homem! Tem mas é juizo. Ia lá contar uma coisa dessas. Não vês tantos raparigos aqui à roda ?
E logo a Eufrásia se levantou a impontar os garotos: - Eh, canalhada, tudo a dormir já, ou vai tudo corrido p’ra casa com um pontapé no cu.
A canalhada nem piou: cada um pegou na sua manta, deitou-se e fingiu que dormia. Eu também.
O Sr. Fidalgo insistiu com a mulher mais uma vez e a Sra. Amélia começou a contar.
O Zé da Azenha, já nos 40 anos feitos, quando todas as alcoviteiras e casamenteiras da vila davam o caso por perdido, viu um dia a Ana Pratas a lavar os pés na ribeira e foi tiro certeiro. Apaixonou-se por aqueles artelhos, como só um homem de quarenta se apaixona.
Perdido e achado era atrás da rapariga. Ela ia à fonte? Lá estava ele embevecido à espreita. Ela ia ao forno?  Ele ia quatro metros atrás dela.
A Corredoura
As amigas da Ana riam-se e ela respondia:- Rás parta o velho. Eu lá quero aquele cara de cu. Arreda!
Os amigos dele aconselhavam: - Oh, homem, tem tento na mona. Não vês que a cachopa tem metade da tua idade.
- E então? Não é uma mulher feita?
Lá isso era. E muito bem feita.

Mas para o pai da Ana, ferrador falido  (cada vez se andava menos a cavalo, já se viajava de camioneta e qualquer dia chegava o comboio à vila; até já havia menos burros e menos machos; o que valia eram umas mulas aqui e ali, que essas eram para todo o terreno e mais baratas no trato), aquele derriço vinha mesmo a calhar. O Zé da Azenha tinha daquilo com que se compram os melões e não só, e oferecia-lhe vinte libras em ouro e duas juntas de bois. Que mais queria ele? Mandava os trastes da ferra às urtigas, comprava umas boas terras de regadio e fazia-se lavrador. Ainda lhe iam tirar o chapéu. A rapariga habituava-se. Bom trato não lhe ia faltar.
A Ana berrou que não e que não, que gostava era do Manuel Gato.
- O quê? Esse pobretanas que não tem onde cair morto? Já viste que eras uma moira de trabalho e nem pão para dares aos filhos?
- Com esse bode velho não me caso. Não me obrigue, pai, que eu mato-me.
- O Zé não é velho, rapariga.
- Ah, pois não. Tem só a sua idade. E uma cara linda como os cramonos da igreja. Não quero, não quero. Já disse.
Mas de nada lhe serviram os protestos nem o choro nem as ameaças. O certo é que a boda fez-se e como a vida corria entre os dois nunca ninguém o soube.
A azenha do Zé ficava lá para o fundo da ribeira, numa quintarola desviada da vila. A moça aprendeu os segredos da moagem e o marido, com jeito e arte para alvenarias, pedra de todo o tipo e feitio, tinha sempre trabalho aqui e acolá, principalmente na vila, pois frontarias, ombreiras de portas e sacadas e outros alindamentos fossem eles em granito, em xisto ou em pedra mais macia, tudo ele fazia na perfeição e ganhava bem. Isto é, ganhavam os dois. Em casa não faltava nada, excepto o amor da Ana pelo Zé e a confiança dele na mulher.
Deixava-a aferrolhada com sete voltas desde manhã cedo até à noite e a chave trazia-a ele sempre presa no cinturão.
De vez em quando, uma ou outra pessoa que passava via a Ana de olhos tristes espreitar ao postigo. A mãe tinha licença para ir ao Domingo buscar a filha e levá-la à missa do dia. Ele ficava ao fundo da igreja, mas não as perdia de vista. Sempre de olhos baixos, a rapariga rezava com fervor. Mais tarde, a mãe contou que julgava tê-la ouvido um dia dizer: - Meu Jesus, se tu não me acodes a quem hei-de eu recorrer? Ao diabo?  E que, nesse instante, levantando os olhos para a hóstia santa, ela sorriu. Era o primeiro sorriso desde que casara. A mãe seguiu-lhe o olhar brilhante e garante que viu, pairando acima da hóstia, a cara formosa de Jesus. Foi por um momento, mas afirma que viu. Assustada, baixou a cabeça e murmurou para a filha: - Também viste?
- Vi sim, senhora. Jesus vai ajudar-me.
E mais conta que, a partir daí, a filha voltou a ter alegria. Recomeçou a pentear as longas tranças, a arranjar-se e a cantarolar. Via-se que esperava o seu salvador.
A mãe estava transtornada de medo. Deu em ir espreitar amiúde a azenha onde a filha continuava prisioneira. Punha-se por trás das moitas, donde via a porta e o postigo.
Um dia viu um homem aproximar-se, bater três pancadas leves: toc, toc…toc e, encostado à porta, disse: “Ai, li”. Não ouviu a resposta da filha, mas o postigo abriu-se e eles beijaram-se. Longos beijos de amor. Não percebeu o que diziam, mas ouviu o riso cristalino da Ana, feliz e descuidada. Depois o postigo fechou-se e, quando ele se voltou, a mãe caiu redonda no chão. A cara era a mesma que vira na missa, pairando sobra a hóstia sagrada. Seria Deus ou o diabo?
As febres tomaram-na de tal modo que caiu à cama e durante dias não disse coisa com coisa. - Ai, a minha pobre filhinha! Ele é o diabo. É o diabo. E as vizinhas comentavam: - É verdade. Bem o podes dizê-lo: ele é o diabo  feito gente.
Ao Zé da Azenha não passou despercebido o que as vizinhas cochichavam. Quando chegou a casa, pegou no Cristo que estava por cima da cabeceira da cama e foi pregá-lo no postigo. - Agora nem o nariz pões lá fora. E acabaram-se as missas ao Domingo.
-Tu queres matar-me, malvado? 
-Eu não quero é um par de cornos.
Jantou e foi para a cama. A Ana não pregou olho. Como seria amanhã, sem conseguir abrir o postigo?
À hora aprazada, as três pancadinhas: toc, toc … toc seguidas da senha  “Ai, li”.  A contra-senha veio numa voz soluçada: “Ai, ló”, mas o postigo permaneceu fechado.
-Não posso abrir. Aquele velhaco pregou o Cristo ao postigo. Agora nem posso ver-te. Arromba esta maldita porta.
- Com o Cristo aí por dentro não é possível. Mas faço já um buraco aqui mais abaixo e podemos ver-nos e falar. 
- Um buraco na porta? Então é que ele me mata mesmo.  
- Nem vai notar, porque o buraco volta a fechar-se.
E enquanto o diabo esfrega um olho, ali estava o buraco feito. Um senhor buraco. Maior que o postigo.
Ele ajoelhou-se na soleira da porta e o seu belo rosto apareceu sorridente. Ao vê-lo, ela esqueceu os seus temores. Um beijo e outro e mais outro. E uma carícia num seio e no outro. E mais uma carícia no sexo e ela ficou louca de desejo. Não lhes foi difícil arranjarem posição para fazer amor. Para a Ana foi um mundo de deslumbramento que se abriu. Nunca imaginara que aquele acto a pudesse enlouquecer de prazer. Sentiu o momento como um milagre. Ainda entontecida ouviu-o dizer : - Amanhã volto.
- Fico à tua espera”.  E assim foi durante dias a fio.
Curiosamente, o buraco ficava tão bem fechado que ninguém seria capaz de o notar.
O Zé da Azenha, desconfiado, porque a mulher, logo de manhã cedo, saltava da cama, lesta como uma cotovia, penteava-se cantando, punha fitas nas tranças...  “Para quem diabo se enfeita ela? Para mim não é, que nem me deixa tocar-lhe. Uhm!  Que se enfeita para homem, disso não tenho dúvidas. Mas eu vou caçar-te, ai vou, vou. A ti e a ele”.
No dia seguinte não foi para o trabalho. Escondeu-se atrás das moitas. Não arredou pé, nem quando o sol já ia alto. Rilhou uma côdea que metera ao bolso e, qual bom cão de caça, esperou com toda a paciência. A meio da tarde, vê um estranho acercar-se. “E agora? A chave tenho-a eu aqui e o Cristo não deixa abrir o postigo”. Espantado vê o janota encostar-se ao postigo e, após três pancadinhas, dizer: “Ai, li”, enquanto retirava uma grande rodela da madeira da porta.
Até do lugar onde estava escondido, o Zé ouvia os suspiros e gemidos. “Cadela, que mas vais pagar. Filho de um corno, eu vou estripar-te”. Sentou-se muito quieto, saboreando a vingança que estava arquitectando. “Não perdeis pela demora. Amanhã ides desejar nem ter nascido”.
Na manhã seguinte, como de costume, comeu a malga das migas de alho e bebeu um púcaro de café. A Ana estava a vestir-se no quartinho pequeno – que haveria de ser para um filho… -   “ Está a enfeitar-se toda para o cabrão”. Abriu a porta da rua, fingiu que saiu, voltou a fechá-la e foi de mansinho que nem um rato meter-se debaixo da cama. O cairel da manta era comprido e ele chegou-se bem para o fundo. Ela não o veria.
Daí a umas horas: toc, toc … toc e a senha “Ai, li”. Veio logo a contra-senha “Ai, ló”. E a Ana foi a correr.
A um metro, escondido na ombreira da porta do quarto, estava o marido com a faca do mato na mão. O amante tirou a tampa e escancarou-se o buraco. Depois de beijos e carícias, o Zé viu entrar pelo buraco um pénis enorme, reluzente, exigindo resposta pronta. Veloz como um raio, decepou o pénis monstruoso que ficou ainda a revirar-se no soalho. A mulher nem teve tempo de dizer “Ai”. O golpe que o marido lhe desferiu atirou-a ao chão onde ficou a esvair-se em sangue.
O Zé da Azenha abriu a porta, mas afirma que do amante da mulher só já viu acima das moitas a cabeça com dois grandes cornos retorcidos. E que, durante algum tempo, ouviu ainda os urros que ele ia soltando enquanto fugia.
Sentou-se ao pé do corpo da mulher e foi a sua vez de gritar. Gritou, uivou que nem um lobo ferido. Alguém que passava no carreiro ouviu e veio espreitar. A cena era de gelar o sangue ao mais afoito. 
- Que foi que aconteceu, José?
 Olhou para o guarda que falava com ele, mirou o mulherio que tentava ver para dentro de casa e não se mexeu.
- Que fizeste, Zé? perguntou o segundo guarda.
Pareceu então acordar de um pesadelo.
- Matei a minha mulher por causa disto -  e, com a ponta da faca, espetou o pénis decepado e pô-lo à vista de todos.
Foi levado para a prisão, mas como apenas dizia: - Cortei a picha ao diabo - batendo com a cabeça na parede, levaram-no para o hospital.
O médico perguntou-lhe: - Então que se passa, Sr. José?
A voz do médico era tão calma, que o Zé levantou os olhos e disse:   - Passa-se que matei a minha mulher e cortei a picha ao di … 
- Espere aí. A sua mulher está viva. Escapou por pouco, mas a faca encontrou uma costela e pronto, ela não morreu.
- Ah, então foi a costela que a salvou? 
- Pois foi .
- Olhe, Sr. Doutor, foi a costela de Adão.
....onde se contavam as estórias...
O médico riu e acrescentou: - Ela está na enfermaria aqui ao lado. Está muito sossegada, sempre a cantarolar uma modinha: “Ai, li; Ai, ló; Ai, li ; Ai, ló”.  Quer vê-la?
- Não, Sr. Doutor. Nunca mais. 
- Então, vamos lá ver essa cabeça. Sabe que não pode bater com a cabeça nas paredes. Tem dois grandes hematomas na testa.
O Zé passou lentamente a mão pela testa e disse em voz pausada:   - São dois cornos, Sr. Doutor. Eu cortei a picha ao diabo e ele, em troca, deu-me um par de cornos. 

Júlia Guarda Ribeiro
Leiria, 8 de Out.º de 2005

10 comentários:

  1. Adoro ler estas histórias antigas. Obrigada, professora Júlia Ribeiro por mais este momento de prazer! Bj
    Vera Pessoa

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  2. Sou o Zé do Carrascal. Não sou o Zé da Azanha. Mas já me fartei de rir com este conto. Já cá fazia falta uma estoria assim.

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  3. Foi realmente uma troca dos diabos .

    Maria do Céu

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  4. É uma pena essa casa estar toda esbarroncada. A minha mãe dizia que parecia um presépio apinhada de pessoas por ali a cima e os raparigos cançados das correrias deitavam-se numa manta no chão enquanto os mais velhos contavam contos.
    Estou longe, mas tanho saudades de tudo isso.

    António Urgel

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  5. Faz o que eu te digo.Escreve:havia um gajo que se chamava Amadeu Pichote, não confundir com Amadeu Chibinho que era irmão do Perna D'aço.Pichote era o mesmo que nabo, falhado ,um Zé Ninguém.Pichote era diminuitivo de picha?Pois seria, o tamanho conta muito na mítica erótica feminina.Em Lisboa dizem pila.Há mais de cem nomes para ambos os sexos.Um glossário de calão sexual do norte vinha a enriquecer a língua transmontana(orgão sexual mais desenvolvido,até fala).Mais uma vez é de destacar a qualidade do texto e a coragem de chamar os bois pelos nomes.
    Agência Tusa.

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  6. Como se diz Picha em Mirandês?

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  7. Os velhos acreditavam mesmo nessas coisas. A minha avó contava-me histórias de feiticeiras e de lobisomens. Mas eu já não sei contar e tenho pena.
    Um beijinho meu e outro do meu neto para a Julinha. É ele que me escreve aqui o que eu dito. E depois lê para eu ver se está tudo bem.

    Maria Augusta do Prado

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  8. Volta Zé da Azelha:
    Portugal 'perdeu' 3.000 ME de investimento e 8 mil empregos só em três projetos falhados
    Um complexo turístico no Alqueva, uma fábrica de painéis fotovoltaicos em Abrantes e a exploração mineira em Torre de Moncorvo: só com três projetos falhados, Portugal 'perdeu' investimentos de 3.000 milhões de euros e 8.000 postos de trabalho.
    Os números avolumam-se com o abandono da fábrica de baterias prevista para Aveiro, um investimento de 56 milhões de euros que deveria criar 200 empregos.
    Em Viana do Castelo, uma fábrica de pás de rotor da multinacional alemã Enercon, cuja primeira pedra foi lançada em 2008 pelo então primeiro-ministro José Sócrates, nunca mais avançou, deixando por concretizar a promessa de criação de um investimento de 55 milhões de euros e de criação de 500 novos postos de trabalho

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  9. Querida Julinha:
    Parabéns!
    Fantástica esta lenda com que fez o favor de prendar os leitores dos Farrapos de Memória.É,sem dúvida,uma excelente narradora de histórias,que nos deliciam e nos deixam fascinados!
    Com um beijo de amizade da sua sempre amiga e admiradora.
    Irene

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  10. Olá caríssimos blogueiros e comentadores:

    Um abração a todos e um abraço muito especial à amiga Maria Augusta que não falha uma destas estorinhas. Quer dizer que vai muito frequentemente aos "Farrapos". Gosto da sua presença e dos seus comentários. Obrigada.
    Outro abração à Ireninha, que tem andado muito arredia destas lides do Blog. Apareça mais vezes, Amiga. Gostamos todos de a ver por cá.

    Júlia

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