terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Zumira morreu 9: da inocência e do pecado


Nos momentos mais tristes Zulmira sentava-se nos degraus. Gostava daquela sensação de desnivelamento da realidade. Sentia que a inconstância daquela superfície dava sentido à sua alma inquieta, cheia de dúvidas. Como se subir e descer com o pensamento fosse comparável à oscilação das respostas face ao ritmo pendular das perguntas.
No dia em que Zulmira decidiu ir ter com o padre da terra teve a esperança de que este lhe daria uma planície de tranquilidade, um patamar de justiça em que repousar da subida íngreme ao cume dos seu esforço. A oportunidade de ficar sentada para sempre num degrau, a admirar, passiva, o nivelamento pacífico do seu coração.
O que Zulmira não sabia é que a Igreja é, também ela, cheia de degraus. Degraus sumidos, feitos para pés pequenos e passos normalizados. E Zulmira percebeu que afinal o que tinha eram pecados, não dúvidas. Descobriu que tinha tantos pecados que ficou assustada e teve medo de morrer naquela hora e ir para o inferno. Uma mulher cheia de maus pensamentos, com desejos de deixar o seu homem para ter outros homens, egoísta e intolerante, incapaz de perdoar. Ela, a Zulmira, a mulher simples que não imaginava outro afecto que os abraços dos seus filhos, que todas as noites rezava uma oração pelo marido, que cicatrizava as nódoas negras com lágrimas silenciosas. Que não conhecia a ira, que não queria vingança, mas apenas descansar da infelicidade. Sim, passou-lhe pela cabeça deixar o marido. Estava convencida de que seria melhor para todos. Mas agora o padre vinha dizer-lhe que isso era um pecado mortal. Que o casamento era sagrado. Indissolúvel. Que cabia às esposas serem pacientes com os maridos.
Quando naquele dia chegou da Igreja Zulmira trazia, então, a desilusão de uma corrente interrompida, de um mar partido ao meio. Sentada na escada, as esquinas de cada degrau pareciam agora mais vivas. Sentia que podia cortar-se e esvair-se de sangue se roçasse os pulsos nas suas arestas. Zulmira descobrira os seus pecados e não sabia o que fazer com eles. Sentia-se suja e incapaz de se lavar. Uma torrente de tristeza, veloz e enfurecida, levando a esperança para o abismo de uma tempestade de que nunca sairia incólume.
Zulmira temia Deus. E não sabia que era inocente. E assim se deixou condenar. Degrau a degrau.
Virgínia do Carmo
Ver:ZULMIRA - I,II,III,IV,V ,VI,VII, VIII. em :
http://lelodemoncorvo.blogspot.pt/2012/02/zulmira-morreu-cronicas-da.html

3 comentários:

  1. O leve, lento e saboreado prazer de absorver a brilhante escrita de Virgínia do Carmo.
    Uma forma única de expressão.

    Armando Sena

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  2. POR QUE SERÁ QUE ESTA ESCRITORA QUE ESCREVE TÃO BEM PROSA SÓ EDITA POESIA?SOU Fã DA ZULMIRA.
    António N.

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  3. Este e outros textos da Virgínia são também poesia!É,na verdade,um prazer saborear a sua escrita.

    Uma moncorvense

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