terça-feira, 13 de agosto de 2013

Para lá do Marão, acolhem-nos os que lá estão

Por Trás-os-Montes, com o mirandês como ingrediente-base, seguimos viagem juntando mais condimentos: burros, gaiteiros, caretos, uma pitada de misticismo, boas doses de hospitalidade e uma natureza que consegue ser "tão bela quanto medonha"
Ti' Giolanda, como é carinhosamente tratada, tem 83 anos, mas ainda consegue, como poucos, domar o vime com as suas mãos gastas. Ainda é de manhã e, na aldeia de Atenor, Miranda do Douro, esta natural de Águas Vivas, outro lugar mirandês, vai mostrando a sua "arte ruim", como lhe advertiu um dia a D. Rosa, a quem pediu que lhe ensinasse o ofício. Até porque este jeito não lhe vem de família. A mãe era costureira, mas Giolanda confessa que essa, sim, não era arte para si. "Não tinha paciência!" Por isso, não obstante os conselhos da sua mentora, decidiu-se pela cestaria.

É nesta envolvência que não podemos deixar de comprovar a agradável sensação da chegada, de termos acabado de aterrar num "outro" país. Não que Miranda do Douro seja longe de ponto algum num Portugal que, de Norte a Sul, soma pouco mais de 500km em linha recta, embora os seus acessos sejam demorados. Mas depois de entrarmos por Espanha e irmos habituando o ouvido a uma sonoridade diferente, vamos compreendendo esta terra que conseguiu manter viva uma língua que não é de terras lusas nem espanholas. E só isso coloca Miranda do Douro - e quem a visita - numa espécie de redoma que, se por um lado nos parece afastar do resto do país, por outro nos aproxima de uma paz como em poucos sítios. Além de nos sentirmos parte de uma identidade única. Mais ainda no nosso caso que, em estreia por estas bandas, não conseguimos despir uma espécie de pele de visitante estrangeiro.
A distância das grandes urbes, diga-se, não intimida Giolanda, que não se consegue imaginar a viver noutro lugar. "Aqui vive-se muito melhor: é o ar que se respira, a água que se bebe, aquilo que se come." "Por exemplo, recebo poucochinho de reforma", informa sem interromper o laborar dos dedos no vime, "mas nunca passo necessidade e às vezes até vou ajudando os filhos que vivem na cidade". "É que aqui há sempre uma horta."

Ua tierra, dues lhénguas
Enquanto conversamos, a mulher vai intervalando entre o português, que usa para conversar connosco, e o mirandês que, a julgar pelas próprias gargalhadas a lembrar uma garota de 15 anos, utiliza quando não quer que percebamos o que diz. Algo que hoje arranca sorrisos, mas que durante a maior parte do século XX foi sinónimo de falta de instrução. Aliás, durante anos a fio, aquela que é hoje a segunda língua oficial de Portugal foi "muito maltratada". Até (acima de tudo talvez fosse expressão mais apropriada) na escola, e por isso pelo menos uma geração perdeu o mirandês. "Era reguadas atrás de reguadas: a professora, que até era transmontana, não permitia que falássemos ou que escrevêssemos em mirandês. Mas ditava mal e porcamente: por exemplo, queria que escrevêssemos "vaca" mas lia "baca"", conta, entre risos e já sem ponta de amargura o sr. Domingos, 61 anos, após uma vida dedicada à História."Falar mirandês era sinónimo de se ser rude", resume.
Certo é que, tanto por algum preconceito como fruto das políticas da época, a língua mirandesa quase enfrentou a extinção antes do renascer a que se assiste actualmente. Mas não foi apenas a língua mirandesa que sofreu. Também as várias tradições da terra foram durante anos (quase) esquecidas. Houve uma altura, inclusive, que "não havia pauliteiros em parte alguma". "Felizmente hoje as coisas estão muito diferentes", reflecte Domingos, que, embora já reformado do ensino, mantém muito vivo o seu interesse pela História.
Há uns anos, Domingos assumiu, com a mulher, os comandos de um pequeno hotel rural em Malhadas, a 5km de Miranda do Douro. Para isso, recuperaram uma casa apalaçada, inserida numa antiga exploração agrária. E a propriedade acabaria por se revelar uma relíquia. Ao longo das obras, há cerca de cinco anos, foram encontradas lajes romanas, talhas funerárias e até marcas da Idade do Ferro (símbolos de um homem a dançar, de uma mulher grávida e de um guerreiro).
Enquanto aproveitamos o sossego das antiquíssimas e preservadas paredes em pedra e tiramos proveito da hospitalidade dos nossos anfitriões - em forma quer de licores caseiros, quer de um pequeno-almoço capaz de dar luta a muitos hotéis de cinco estrelas - , a rua é ocupada por imponentes vacas mirandesas. Por estas bandas, o gado faz parte da paisagem. E não será boa ideia acelerar em demasia pelas estradas transmontanas. A possibilidade de encontrar uma vaca em contramão é mais comum do que poderíamos imaginar. Aliás, a probabilidade de se encontrar qualquer espécie de bicho no meio do caminho não está fora de questão: ovelhas, cabras, cavalos e, claro, os afamados burros, que contam, desde 2001, com a ajuda da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA).

De animal de carga a estrela
O objectivo inicial da AEPGA era, como o nome indica, proteger o burro transmontano. Mas o seu campo de acção estendeu-se de forma natural e hoje é uma das impulsionadoras da preservação de diversas actividades tradicionais, tais como a dos gaiteiros, à qual aderem cada vez mais jovens. Há, porém, outras tradições que "felizmente já não se usam", como nos conta um dos membros da Confraria do Mel. "Na minha aldeia", relata animada uma mulher nos seus quarenta, "eram "dadas" partes do burro às raparigas, e a parte dada representava o que ela era; e algumas partes, diga-se de passagem, não diziam muito bem de quem a recebia."
Enquanto isso, o cesto de Ti"Giolanda já começou a ganhar forma e está prestes a juntar-se aos outros já em exposição: nuns o vime sobrepõe-se; noutros vêem-se duas asas, noutros ainda, tampas. A seu lado, Maria da Glória, de 54 anos e residente em Vilar Seco (uma aldeia onde se fala também mirandês, mas já no concelho de Vimioso), mostra outra maneira de criar cestos: "Isto faz-se com centeio e silvas", explica, enquanto vai raspando as grossas cordas de silvas deitadas sobre o seu colo com uma pequena faca bem afiada. "Assim demora muito mais tempo. Enquanto aqui a Giolanda faz dois ou três, eu acabo um." A sua arte é, aliás, muito respeitada por quem já a tentou.
É o caso de Joana Braga, 31 anos e natural de Braga, que após o curso de Engenharia do Ambiente na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro rumou à pequena Atenor para ingressar num estágio profissional com a AEPGA. "E ainda aqui estou", conclui de sorriso aberto, enquanto vai abrindo um pacote de bolachas e as oferece a Giolanda e a Maria da Glória. Pelos burros, pela associação, mas também pela forma de viver dos mirandeses. E Joana não é caso único: a maioria das pessoas que faz parte da AEPGA não é da zona e a associação continua a receber estagiários de vários pontos do país.
Enquanto se trocam histórias no pequeno terreiro onde Giolanda e Maria da Glória criam e vendem os seus cestos, pelas ruas de Atenor os burricos fazem as delícias de várias pessoas, a maioria crianças, que se passeiam no seu dorso. "Depois do burro, que em Trás-os-Montes foi sempre um animal de trabalho, ter sido substituído pelas máquinas, a sua existência viu-se ameaçada. Por isso, tinham de se arranjar outras funções para ele."
Hoje, os burros continuam a marcar o dia-a-dia do Planalto Mirandês, mas agora com estatuto de estrelas, cumprindo funções pedagógicas e terapêuticas (com crianças com necessidades especiais), além de as suas fêmeas serem as principais fornecedoras do principal ingrediente de uma linha de cosmética, a TomeloCleo, que tem por base o leite de burra da raça asinina. Uma oportunidade de negócio que juntou o útil ao agradável: não só contribui para a economia local, como para a preservação da espécie asinina autóctone do Planalto Mirandês.
Claro que não se pode esquecer uma das mais importantes novas funções do burro e que pode ser facilmente vivida por qualquer um que procure este refúgio transmontano: a de lazer, servindo de montaria em passeios pela região ou sendo o protagonista de vários eventos, como na Ronda das Adegas, cuja segunda edição decorreu em Junho e por onde encontrámos um pouco de tudo de bom da região: o pão, o vinho, o porco no espeto, os doces, o artesanato... E, acima de tudo, hospitalidade.
"Costuma-se dizer que por aqui "bate à porta, entra, quem é?"". "Ou seja", explica Joana, "primeiro convida-se a entrar; só depois surge a pergunta. E não é apenas uma maneira de dizer; é mesmo assim. O que diz muito das pessoas."

Do belo ao medonho
Logo na primeira noite em Miranda do Douro, Domingos faz-nos um breve resumo do que poderíamos encontrar se decidíssemos embarcar num passeio pelo Douro Internacional ao qual acabaríamos por não resistir. Entre um grupo de espanhóis e uma guia que tanto falava irrepreensivelmente o português como o castelhano - "Quando os meus pais me perguntavam se eu era portuguesa ou espanhola, respondia-lhes que era do rio, e assim não magoava nenhum" -, arriscamos uma incursão pela fronteira de água. Do lado luso, "abençoado por ter exposição solar da parte da manhã", a exuberância do verde. Na parte espanhola, fustigada pelo impiedoso sol da tarde, apenas pedra. Escarpas que parecem ter sido cortadas à faca e que nos reduzem a seres minúsculos.
Uma sensação que, tal como nos descrevia o nosso anfitrião de Malhadas na noite anterior, "tem tanto de belo quanto de medonho" e que se torna ainda mais forte em São João das Arribas, onde "o silêncio revela toda a agressividade do Douro". Já em Santo André, no Souto, é a paz que predomina, sobretudo por altura das amendoeiras em flor. E no miradouro da Fraga do Puio, próximo de Picote, é impossível não sentir a emoção à flor da pele pelo dramatismo da paisagem.
Seria em Picote, aldeia na qual se pode observar um exaustivo trabalho de restauração das várias casas, que teríamos um primeiro contacto com a tal hospitalidade transmontana de que nos falaria Joana mais tarde, já em Atenor. Chegamos sem avisar, mas nem por isso as portas se fecham. Susana, que trabalha para a Frauga - Associação para o Desenvolvimento Integrado de Picote, abre o Terra Mater - Ecomuseu de la Tierra de Miranda logo após nos apresentarmos.
Aqui pode conhecer-se não só como se vivia na região como também recuperar algumas das tradições antigas através de oficinas. Será Susana a levar-nos por um caminho de terra batida para conhecermos a Fraga do Puio, um miradouro natural sobre uma curva cerrada do rio Douro entre as arribas. A vista é assombrosa. E quase poderia parecer irreal não fosse a tão humana presença de um miúdo sentado à beira do penhasco. Juntamo-nos na contemplação, não sem antes testemunharmos o pequeno painel de uma rocha onde se destaca a figura de um arqueiro em posição de lançamento e que atrai estudiosos de todo o mundo à pacata aldeia de Picote.

Demónios à solta
Levados nesta senda das tradições, seguimos para Podence, concelho de Macedo de Cavaleiros, célebre pelo seu Carnaval onde os mascarados ocupam as ruas, atormentando tudo e todos, mas sobretudo as mulheres. Já nós, que chegamos aqui nos dias longos de Junho, estamos livre de nos cruzarmos com aqueles "diabretes" que se inspiram nas antigas Saturnais Romanas, durante as quais, resume o Grupo de Caretos de Podence, se pretendia "acalmar a ira dos céus e garantir favores de uma boa colheita".
Os rituais pagãos, aliás, multiplicam-se por toda a região, onde o religioso se confunde muitas vezes com o profano e onde a própria paisagem imprime uma aura de certo misticismo. Algo que é impossível de ignorar, quer pela paisagem agreste de Montalegre, pelo poder de Pitões de Júnias (uma escadaria recém-construída ajuda a chegar a uma imponente cascata), ou pelas brumas que frequentemente invadem o verde de um Gerês ainda transmontano.
Com várias referências místicas em mente, e usufruindo da paz das ruas, seguimos em busca dos foliões de Podence na Casa do Careto, logo à entrada de Podence, onde desde 2004 se reúne uma colecção de histórias e de máscaras. São, aliás, estas que potenciam os excessos vividos por altura do Carnaval, a maioria com uma vertente erótica e com as mulheres solteiras como alvos preferenciais. "Encostam-se a elas e ensaiam estranhas danças (...), agitando a cintura e batendo com os chocalhos nas ancas das vítimas que para bem do corpo acompanham a dança." As partidas, porém, já não são as de outros tempos e que incluíam fustigar as "moçoilas da aldeia" com pele de coelho seca, bexiga de porco fumada e banhos de formigas.
Mas, de qualquer das maneiras, caretos só em Fevereiro. O que não quer dizer que Podence fique de fora dos nossos destinos de férias em Trás-os-Montes. Além do sossego e do ambiente caloroso da aldeia, é a partir dela que se pode rumar à descoberta de uma das praias que conquistou o galardão de maravilha em 2012: a praia da Ribeira, na Albufeira do Azibo que, permita o tempo, convida a demorados e prazenteiros banhos.
E se o tempo não estiver para mergulhos, então não é de descartar uma incursão por toda a Paisagem Protegida da Albufeira do Azibo, a pé ou de bicicleta, e observar majestosas aves em voos rasantes pela água da barragem, ouvir o coaxar contínuo e sentir os aromas da moldura florida que rodeia a barragem.
E é com o olhar preso nesta Natureza avassaladora, embalados ainda por uma hospitalidade próxima e natural, que deixamos estas terras para trás com uma certeza: a do regresso. Porque depois de descobrirmos Trás-os-Montes, precisamos mesmo regressar para nos voltarmos a sentir em casa.
_____________
GUIA PRÁTICO
Onde Dormir
La Barandica
Rua Caminho de Miranda
Malhadas - Miranda do Douro
Tel.: 273 417 226/7
www.labarandica.com
GPS: 41.5367106/ -6.333242
Uma unidade de turismo rural, gerida por um simpático casal a residir no espaço. Os quartos são confortáveis, a hospitalidade irrepreensível e o pequeno-almoço é de fazer crescer água na boca.
Casa de l Bárrio
Rue de l Bárrio, 7, Picote
Tel.: 273 738 088 / 965 618 004
www.casadelbarrio.com
GPS: 41.400112/ -6.3704778
Uma casa de arquitectura tradicional, cuidadosamente restaurada com recurso a energias renováveis e materiais naturais. É constituída por dois quartos duplos, cada um com a respectiva casa de banho. Um espaço comum de cozinha e sala e um espaço de leitura.
Montalegre Hotel
Rua do Avelar, 100, Montalegre
Tel.: 276 510 220
www.montalegrehotel.com
GPS: 41.8193866/ -7.7945443
Um quatro estrelas com 42 quartos, três devidamente equipados para hóspedes com mobilidade reduzida.

Onde Comer
Restaurante Piano Bar O Castelo
Terreiro do Açougue, 1, Montalegre
Tel.: 276 511 237
GPS: 41.8253315/ -7.7914509
O espaço é acolhedor, com uma sala de refeições com lareira. É de apostar numa escolha com base nas iguarias típicas da região, entre as quais não podia faltar a famosa posta de vitela barrosã.
Mirandês
Rua de Dom Dinis, 7, Miranda do Douro
GPS: 41.4969385/ -6.2743235
Tel.: 273 432 823
Ambiente descontraído e mesa recheada. Entre a carta, destaca-se a posta mirandesa.
Restaurante Montanhês
Rua Camilo Castelo Branco, 19, Macedo de Cavaleiros
GPS: 41.5319808/ -6.9544492
Tel.: 278 422 481
Restaurante tradicional em que a simpatia não é desprezada. A carta oferece sobretudo pratos à base de carne e produtos regionais. Em destaque, a telha do montanhês, composta por carnes grelhadas que chegam à mesa acompanhadas por fruta.

O Que Fazer
Passeios de Burro
AEPGA - Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino
Largo da Igreja - Atenor
Tel.: 273 739 307 / 966 151 131 / 960 050 722
www.aepga.pt
GPS: 41.4334596/ -6.4876486
Passeios de burro à descoberta da natureza e das aldeias tradicionais do Planalto Mirandês, Parque Natural do Douro Internacional e Vale do Rio Sabor, com partida desde os Centros da AEPGA - "O Palheirico" em Atenor ou do Centro de Actividades Asinoterapêuticas em Pena Branca. Os passeios podem durar desde uma hora até três dias.
Museu em Picote
Frauga - Associaçon pa l Zambolbimiento Antegrado de Picuote
Rue de la Peinha de l Puio
Tel.: 273739726
GPS: 41.400112/ -6.3704778
Cruzeiro Ambiental pelo Parque Natural do Douro Internacional
Estação Biológica Internacional - Miranda do Douro
Tel.: 273432396
www.europarques.com
Uma incursão pela fronteira de água ao longo da qual se pode observar uma variedade impressionante de fauna e flora. No fim, há espectáculo com aves de rapina.
Casa do Careto
Associação Grupo de Caretos de Podence. Podence
Tel.: 919750771
GPS: 41.5319808/ -6.9544492
O espaço onde se pode compreender melhor a tradição que, todos os fevereiros, leva às ruas homens mascarados nas mais diversas tropelias. Entre a colecção, máscaras antigas.
Praia Fluvial do Azibo
Macedo de Cavaleiros
GPS: 41.5819444 | - 6.8977777
Para nadar, refrescar ou apenas passear. Uma espécie de oásis transmontano.http://fugas.publico.pt/FugasEmPortugal/323853_para-la-do-marao-acolhem-nos-os-que-la-estao?pagina=-1

    1 comentário:

    1. Apesar da letra minúscula e do texto assaz longo, li-o de fio a pavio. Reconheci lugares já palmilhados e tomei notas para conhecer aqueles que ainda não vi.
      Resta dizer que gostei muito das pitorescas e saborosas descrições.

      Obrigada.
      Júlia

      ResponderEliminar

    Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.