quarta-feira, 20 de novembro de 2013

By Heart. Dez pessoas e um pomar de poemas,por Tiago Rodrigues

Tiago Rodrigues convida o público a decorar um soneto de Shakespeare. Nós tentámos cumprir. De hoje a sábado no Maria Matos, em Lisboa Isto aconteceu mesmo. E o problema é que nunca tive muito jeito para decorar textos. Pouso a mala, tiro a caderno para cima do joelho e, quando dou por mim, estou sentado ao lado de dez pessoas a decorar os primeiros quatro versos do 30.º soneto de Shakespeare. Ora vejamos se ainda me lembro: "Quando em meu mudo e doce pensamento/ Chamo à lembrança as coisas que passaram..." Ups. Mas o ensaio de imprensa já foi na semana passada, não me recriminem. E ir à internet é batota. Espero não ter desiludido ninguém. Além disso, a peça envolve muitas outras referências linguísticas, entrevistas, citações de autores e afins.

Estou desculpado? E o caro leitor prepare-se, porque o espectáculo só começa quando as dez cadeiras estiverem preenchidas. E só termina quando o poema estiver sabido. De hoje a sábado no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Não tenha receio.
Tiago Rodrigues, encenador e actor, conta-nos uma história pessoal que decidiu levar a palco. Cândida, sua avó, tem 94 anos e vive em Trás-os-Montes.
De quando em vez, quando a visitava, o neto levava-lhe pilhas de livros para ela ler. Certo dia, a avó pede-lhe para que leve todos os livros de sua casa e que escolha um para decorar por inteiro, isto porque a falta de visão lhe está a deteriorar a leitura. Um livro para poder ler mentalmente quando deixar de ver por completo. "A ideia surge do desejo da minha avó. Foi uma história que comecei a contar a algumas pessoas e achei incrível, à medida que fui relatando, que essa vontade estivesse relacionada com aquilo que faço profissionalmente e com a forma como vejo o teatro", explica.
Com o desenrolar do espectáculo, Tiago Rodrigues vai explorando histórias de textos proibidos que, por uma ou outra razão, tiveram de ser decorados mentalmente para sobreviverem. Para isto baseou-se na entrevista de George Steiner no programa holandês "Beleza e Consolação". Palavras soltas e combinações pouco prováveis que se interligam com a história de Cândida e com a sua. A primeira citação que dá o mote pertence precisamente a Steiner: "A maior homenagem que podemos fazer a um texto é decorá-lo, pelo coração, não pelo cérebro [by heart, not by brain], porque a expressão é vital."
A forma da peça é um bocado esta. Volta não volta, Tiago Rodrigues retira um livro das duas caixas de fruta presentes no centro do palco. Um pomar de obras a que vai recorrendo para distrair os dez escolhidos. Estou bem sentado a apontar umas notas soltas, dentro do enredo, e subitamente... lá regressa: "Quando em meu mudo e doce pensamento/ Chamo à lembrança as coisas que passaram/ [qualquer coisa...] e me sustento/". Não consigo, admito.
E isto repete-se inúmeras vezes, pelo meio ligações com o Prémio Nobel Boris Pasternak, Ray Bradbury, Joseph Brodsky, Nadejda e Osip Mandelstam, entre muitos outros (aqui está a prova, sou melhor com nomes). E sempre regressa o malandro Shakespeare para nos atormentar e passarmos vergonhas. Quando é em coro - os primeiros quatros versos são decorados em grupo -, ainda disfarça. O passo seguinte é que é mais complexo: os restantes dez versos do soneto vão ser ditos por cada pessoa individualmente. Bonito. Mas Tiago Rodrigues rejeita a ideia de que esta tarefa seja um incómodo. "Sou um bocado alérgico a teatro interactivo em que as pessoas se sentem usadas. É um convite como se fosse para a minha cozinha, são tratadas com esse respeito de quem aceitou generosamente aprender um texto", explica.
Enquanto o actor continua a procura do livro que há-de escolher para a sua avó decorar, o exercício mental já começa a ser outro. Nunca perder o fio à meada, ir sempre dizendo interiormente o verso que nos calhou. Até tive sorte, fiquei na última cadeira e bastava-me dizer: "Vão-se as perdas e as tristezas, fim"(penso que era isto). Para o encenador, apesar da insistência que a certa altura começa a ser um desafio que todos queremos superar, o essencial não é o poema ficar sabido. "O que é realmente importante é o esforço para que isso aconteça. O que é bonito de observar é as pessoas a tentar, aperceber-me de que aprender o texto ganha um significado cada vez maior", confessa.
Já deve ter percebido que o livro que Cândida recebeu para decorar são "Os Sonetos de Shakespeare" e aqui vamos nós decorando apenas o 30.º. O mentor da peça admite que o texto veio apenas no final, chegando mesmo a ensaiar sem nada escrito. Além disso, decorou tudo o resto. São profissões diferentes. Não ligue à experiência tumultuosa de um jovem jornalista. E pense que assim já sabe os dois primeiros versos e o último, digo eu. Mas não seja muito explícito, diga baixinho, que ainda fico mal visto. "Quando em meu mudo e doce pensamento..."


http://www.ionline.pt/artigos/mais/by-heart-dez-pessoas-pomar-poemas

3 comentários:

  1. Tiago Rodrigues é filho do jornalista Rogério Rodrigues, natural de Peredo dos Castilhanos.

    ResponderEliminar
  2. Que ideia fabulosa !
    Gostava de poder estar lá, mas é-me de todo impossível.

    Abraço
    Júlia

    ResponderEliminar
  3. Em By heart, Tiago Rodrigues ensina um poema a 10 pessoas. Essas 10 pessoas nunca viram o espetáculo e não faziam ideia que poema iriam aprender de cor à frente do público. Enquanto os ensina, Tiago Rodrigues vai desfiando histórias sobre a sua avó quase-cega misturadas com histórias sobre escritores e personagens de livros que, de algum modo, estão ligados à sua avó e a ele próprio. Esses livros também estão lá, em palco, dentro de caixotes de fruta. E à medida que cada par de versos vai sendo ensinado ao grupo de 10 pessoas, vão emergindo ligações improváveis entre o vencedor do Nobel Boris Pasternak, uma cozinheira do norte de Portugal e um programa de televisão holandês chamado Beleza e Consolação. E o mistério da escolha do poema que as 10 pessoas decoram vai sendo esclarecido.
    By heart é uma peça sobre a importância da transmissão, do invisível contrabando de palavras e ideias que apenas guardar um texto na memória pode oferecer. É sobre um teatro que se assume como esse lugar de transmissão do que não pode ser medido em metros, euros ou bytes. É sobre o esconderijo seguro que os textos proibidos sempre encontraram nos nossos cérebros e nos nossos corações, garantia de civilização mesmo nos tempos mais bárbaros e desolados. Como diria o professor de literatura George Steiner numa entrevista ao programa de televisão Beleza e Consolação: “Assim que 10 pessoas sabem um poema de cor, não há nada que a KGB, a CIA ou a Gestapo possam fazer. Esse poema vai sobreviver”. Em última análise, By heart é uma recruta para a resistência que só termina quando os 10 guerrilheiros souberem o poema de cor.
    texto, encenação e interpretação Tiago Rodrigues texto com fragmentos e citações de William Shakespeare, Ray Bradbury, George Steiner, Oliver Sacks, Joseph Brodsky, entre outros cenário, adereços e figurino Magda Bizarro apoio técnico André Calado imagem do cartaz Westwood & Strides direção de produção e fotografia de cena Magda Bizarro assistência de produção Rita Mendes residência artística O Espaço do Tempo produção Mundo Perfeito coprodução O Espaço do Tempo, Maria Matos Teatro Municipal espetáculo criado com a cumplicidade da equipa d'O Espaço do Tempo



    Ao longo de 5 semanas o Teatro Maria Matos apresenta um vasto programa de espetáculos que assinala o décimo aniversário da mala voadora e do Mundo Perfeito. Não há aniversário sem festa e, a convite do Teatro, as duas companhias juntam-se para organizar uma maratona artística que servirá também para assinalar os 44 anos do Teatro Maria Matos.
    http://www.teatromariamatos.pt/pt/prog/teatro/2013-2014/byheart

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.