sexta-feira, 16 de junho de 2017

Mil Novecentos e Setenta e Cinco, de Tiago Patrício (Texto de apoio)

Tiago Patrício e Leonel Brito
Por vezes, a propósito de um livro, perguntam-me que personagem é que sou e eu digo, com alguma pena para quem pergunta, que não sou nenhuma ou que sou várias. Mas essencialmente sou como o Leonel, um observador com a câmara às costas, um “Cameraman”, que vai registando diferentes perspectivas do mundo, sem criticar, sem procurar uma moral, usando o mínimo de adjectivos possível e sem me tornar na personagem principal.
É curioso que quando sonhamos nunca vemos a nossa imagem, vemos o mundo a passar à nossa frente, com pessoas e objectos que conhecemos ou que nunca vimos e por vezes estamos num lugar bom e noutras somos perseguidos, mas o nosso corpo nunca aparece inteiro. Se nos esforçarmos podemos ver os pés, as mãos, a barriga. A partir desta ideia é possível estabelecer a ligação com o Cameraman, aquele que tudo vê, que faz ampliações de imagens e cortes, mas tem dificuldade em ver-se a si próprio. Por isso, nos sonhos nós fazemos uma espécie de filme documental e quando acordamos temos algumas imagens fragmentadas na cabeça, mas só com esforço é que conseguimos reconstruir o filme inteiro.


Isto vem a propósito de um sonho recorrente. Sonho muitas vezes que entro num comboio a vapor na Estação de Carviçais, atravessamos a aldeia e paramos no apeadeiro da Fonte do Prado em frente à escola primária. Depois o comboio retoma a marcha em direcção a Moncorvo, mas no apeadeiro de Mós, a linha desvia-se para a esquerda e começa a descer a grande velocidade, passa ao pé da igreja e do cemitério de Mós e continua até à Barca d’Alva, criando uma linha própria que não existe, mas que é magnífica. Eu continuo à janela, a apontar a objectiva e vejo pessoas nos campos a levantar a cabeça à passagem do comboio, a tirar o boné e a acenar. As montanhas abrem-se para o comboio passar, as pontes estendem-se sobre os córregos e sinto um grande desejo de que a linha não tenha fim.
Foi para recuperar essa viagem imaginária que escrevi este livro. Horácio parte de Lisboa, da grande estação de Santa Apolónia, chega ao Porto, apanha a linha do Douro até ao Pocinho e troca para uma automotora de via estreita que o deixará num apeadeiro entre Moncorvo e Duas Igrejas.
Foi também para arranjar uma memória pessoal do Verão Quente de 1975 que meti as mãos em assuntos que me foram ocultados na escola. Mas este não é um romance histórico, não tem relação nenhuma com aquela ideia da “vida tal como ela é”, nem tampouco tenho a pretensão de reproduzir nenhuma verdade dos factos. E para tirar as dúvidas, é só ler um dos últimos capítulos: Os escritores mentem muito.
Talvez por isso é que a literatura está em crise, há muitos escritores a tentar dizer a verdade e nada mais do que a verdade e demasiados políticos com o monopólio da mentira, quando devia ser exactamente o oposto. A justiça para os tribunais, a coragem para os militares, a temperança para os ministros e a beleza para as mulheres. Quando à arte e à literatura, a liberdade criativa.
Uma das grandes vantagens de ser escritor é a de não estar constrangido com questões de validação ou até de geografia, ao contrário dos historiadores ou dos jornalistas. Posso pôr uma personagem a dizer: “Amanhã vou-me embora para Lisboa e nunca mais volto a Portugal”, sem ser acusado de desconhecer o nome da capital portuguesa. Basta apresentar argumentos credíveis e escrever com qualidade e convicção. É preciso não esquecer que há romances tão fortes que condicionam a realidade. Por exemplo, quem for a Verona, em Itália, poderá visitar a varanda de Julieta, onde ela, supostamente, escutava os poemas de amor de Romeu. No entanto, Shakespeare nunca foi a Verona, Romeu é uma invenção e Julieta era representada por um homem no teatro inglês do século XVII.
O “Mil Novencentos e Setenta e Cinco” está cheio de personagens imperfeitas, mas carregadas de uma nobreza que não se encontra em mais lado nenhum, mas não é um substituto da realidade, nem uma compensação para o que eu gostava que o mundo fosse. É um objecto totalmente dependente do leitor para existir e que, na melhor das hipóteses, pode comover ou causar uma boa gargalhada através do mecanismo da ilusão. E este é o grande desafio de um escritor, conseguir que um livro funcione e crie uma ligação repentina com o leitor, quando é apanhado num momento de distracção e que por causa de um livro se atrasa para um almoço ou desmarca uma reunião só para poder ler mais alguns capítulos e fica acordado até mais tarde só para chegar ao fim.
Pessoalmente, gosto de retardar o fim de um livro. Quando chego às últimas vinte páginas volto para trás outras vinte para saborear melhor o desenlace.
Por vezes também me perguntam como é que se escreve um livro. Pode-se fazer de muitas maneiras, se tiver personagens é mais fácil, se forem pessoas mais fácil ainda, se fizerem coisas em conjunto e tiverem uma família então está tudo pronto, basta adicionar algumas qualidades e expectativas para começar a escrever. O enredo ou a trama vem por si.
Um bom livro, posso arriscar, é aquele que nos deixa com vontade de saber mais coisas, aquele que termina exactamente na altura certa, mas que mantém várias possibilidades em aberto e possui uma espécie de energia potencial que não se esgota. Normalmente, os melhores livros são aqueles até às 300 páginas, porque a partir daí arrisca-se a ser maçador, com recapitulações e esclarecimentos a cada novo capítulo, até que o leitor começa a desejar que aquilo acabe depressa. O “Mil Novecentos e Setenta e Cinco” foi pensado para ter mil páginas, o que o poderia tornar num livro indigesto e com demasiadas explicações sobre a vida de cada uma das 40 personagens. Por isso é que acabou com 430, só para não aborrecer os leitores.
E para não vos maçar mais queria contar uma história sobre cinema, a propósito da presença do Leonel, que agradeço muito e de estarmos aqui em Moncorvo perto do Cineteatro, onde fui pela primeira vez ao cinema há mais de 20 anos. Disse à minha mãe que tinha um trabalho de grupo para fazer e fiquei cá para uma das sessões de quarta-feira. Mais tarde ela descobriu, mas não se zangou, gostava que eu fosse ao cinema. Eu aproveitei e da segunda vez disse-lhe que ia ficar em Moncorvo para ir ao cinema, mas fui com o Tiago Alagoa para Urros. Nessa tarde tive um acidente na mota dele.
Por isso é que não se deve usar o cinema para mentir, corre sempre mal. Mais vale arranjar outras desculpas: tenho um trabalho de grupo, uma reunião do Conselho Pedagógico ou um aniversário. O cinema é que não se pode trair.
Queria terminar com uma metáfora relacionada com a exploração do ferro, para dizer que cada livro corresponde a uma nova descoberta, qualquer coisa como um filão ou uma jazida que se encontra e só a partir daí é que o livro começa a avançar e a ganhar autonomia, antes disso é um amontoado de ideias ou de intenções. Tal como na exploração mineira, podem fazer-se muitos estudos, mas só quando as máquinas vão para o terreno e se abrem as galerias é que a mina se torna uma realidade material. Aproveito para perguntar se alguém sabe quando é que o Ferro-minas volta a funcionar. Parece-me que está na altura para uma reedição. E eu próprio tenho um romance para escrever sobre isso e estou só à espera da abertura das minas.


Tiago Patrício
Biblioteca Municipal de Torre de Moncorvo, 30 de Maio de 2014

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