segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Teresa Martins Marques - POEIRA DO TEMPO

DEGRAUS DO PASSADO 


Corria ensolarado o mês de Maio de 1973. Leonor, apressada, corria também da Faculdade para o Colégio. De manhã era aluna, pela tarde, professora. O companheiro terminava o curso de Direito na Clássica, os escritórios da TAP pagavam-lhe um parco ordenado de subsistência. Vinte e dois anos, grávida de dois meses, a jovem mulher, casada de fresco, deitara mãos ao trabalho, liberdade não é dependência dos pais.
Almoço no bar da cantina, corria para o autocarro 35, que seguia ronceiro entre Sapadores e o Hospital de Santa Maria. Leonor descia em frente ao Técnico, logo no início da Alameda, era assim desde Outubro passado, quando aluna, professora e quase-mãe, tinham começado as aulas. O mistério de três pessoas numa só verdadeira.
Sorriu ao lembrar-se da infância protegida, da madrinha catequista:
 – Quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?
 – Três, madrinha: o Pai, o Filho e a Pomba.
Sorriso maroto da menina, gargalhada estancada à pressa da madrinha catequista, esta menina é um mafarrico, pensou.
– Então, são três pessoas e são três deuses, não é verdade? Interroga a madrinha catequista, não para examinar a criança em matéria de fé, apenas para ver o que dali saía … e logo o mafarrico galhofeiro:
– Ah! Ah! Isso é que era bom! Se fossem três pessoas e três deuses, lá ia o mistério de patas ao ar!

 A jovem mulher continua a sorrir lembrando a criança que foi. Conserva dela a garridice e sobretudo a vocação para o protesto. Naquele dia, mal conseguira engolir o almoço, os enjoos matinais duravam até tarde, a médica Cesina Bermudes dizia-lhe que iam passar depois dos três meses. Acolheram-se mutuamente num sorriso cúmplice desde a primeira consulta, na Rua Santos Dumont. Cesina Bermudes fora a primeira mulher doutorada em Medicina em Portugal, corria o ano de 1947, e logo em 1949 participara activamente nas eleições do Norton de Matos. Expulsa da Faculdade de Medicina, a nota de dezanove do doutoramento não fora suficiente para lhe compensar as ideias subversivas. A jovem médica não demorou a ser presa. Estava no Aljube quando, no ano seguinte, Leonor nasceu.
Proibida de exercer a profissão nos Hospitais Civis, Cesina Bermudes ajudava as crianças a virem ao mundo na Clínica Cabral Sacadura, propriedade de gente abastada, uma casa cor-de-rosa junto ao metro do Parque, onde as mulheres controlavam como podiam as contracções, graças ao parto sem dor, que Cesina Bermudes introduzira em Portugal.

Leonor confiava na médica mais do que em si mesma. Ela acalmava-lhe o medo, lembrança reminiscente do parto complicado, o cordão enrolado à volta do pescoço, nascera quase morta, a mãe contava: - O médico disse, que pena, é uma menina morta! Mas um som estridente quebrou o silêncio de chumbo e o pai aliviado do susto a rir, a rir muito: - Para morta ainda grita muito bem!
Nunca mais se calou. Aos oito anos fez a sua primeira revolução na escola primária. A professora, informadora da PIDE, soube-o mais tarde, defendia e praticava o método pedagógico da reguada a torto e a direito. Quem tivesse mais de dois erros no ditado podia preparar as mãozitas que muitas vezes nem chegavam a desinchar de uns dias para os outros. Como as da Zé, a sua melhor amiga, o bombo da festa, que nunca acertava com os “SS” e o “Ç”. A companheira de carteira de Leonor era a Fernandinha, filha da professora, que dava erros como a mãe dava reguadas. Mas não nas mãos dela. Oito erros, contou Leonor nesse dia no caderno de capa amarela da Fernandinha, que a mãe rapidamente escondeu na gaveta da secretária para lhe poupar as mãos de seis reguadas. Não podia ser! Aquilo tinha de acabar! De hoje não passa! - pensava a pequena Leonor. E, se bem pensou, melhor o fez. Chegou a hora do recreio. A Zé esfregava as mãos doridas das reguadas e a Fernandinha esfregava-as de contente. Leonor aproveitou a ausência da professora que fora tomar o costumeiro café, esgueirou-se para dentro da sala e certificou-se: oito erros, sim senhora, marcados a vermelho com uma grande roda à volta!
Entraram de novo para a sala de aula. Antes que o diabo esfregasse um olho, Leonor abria a gaveta da secretária e tirava de lá a prova do crime.
– Ponha já isso no lugar! – grita-lhe a professora com olhar fulminante.
– Não ponho nada! – gritava também Leonor a plenos pulmões e brandia, possessa, o caderno de capa amarela.
A professora avança então para Leonor de mão no ar. Não conseguiu baixá-la, porque já Leonor saltava para cima de uma cadeira, e gesticulava em fúria:
– Vou contar tudo ao meu pai! Vou contar tudo! Ele vai acusá-la ao inspector! Bate nas outras e não bate na sua filha! Vou contar! Vou contar! – gritava a pequena  Pasionaria de cabelo desgrenhado, laçarote a desfazer-se.
A professora abriu os olhos e as narinas de raiva:
– Desça já daí imediatamente!
Leonor fuzilou-a com os olhos, desceu e correu porta fora com o caderno amarelo na mão. Chegou a casa esbaforida e mostrou-o ao pai. Na semana seguinte a professora recebeu um telefonema do inspector escolar e as mãos da Zé finalmente conseguiram desinchar.

 Estava quase na hora marcada para o meeting de protesto contra os estudantes presos. A cantina ia enchendo aos poucos. Do alto da parede da sala de convívio pendiam grandes cartazes com a longa lista de nomes  dos estudantes presos. Liberdade! Liberdade! E a palavra não passava de palavra escrita no cartaz. Que pena não poder ficar para o meeting, pensou Leonor, mas a aula de Francês sobre o Micromégas esperava-a no Colégio. Nesse tempo ainda se aprendia língua e literatura francesa no ensino secundário.
Passo apressado, Leonor olha o relógio, cinco minutos para apanhar o autocarro 35. À saída do refeitório, trava-lhe o passo a Rita, colega nas aulas de Latim:
–  Leonor, hoje faltei à aula. Emprestas-me a tradução?
– Amanhã falamos, vou dar aula, não posso perder o autocarro, respondeu Leonor, e nem parou. Rita faz uma cara de poucos amigos, paciência, pensou Leonor, levanta-se tarde, não põe os pés nas aulas, anda na rambóia pela noite fora. Espere até amanhã, se quiser. Aos vinte e quatro anos continuava a ser sustentada pelos pais, sabia lá a Rita o que era estudar e dar aulas ao mesmo tempo, uma criança a caminho, as consultas, as compras, a comida, a casa para arrumar. Dinheiro contado, o que valia era a cantina, 8$00 o almoço. Na semana anterior, de boicote às aulas, exigindo a libertação dos colegas presos, a menina Rita já conseguiu levantar-se cedo, para furar a greve, pois claro. 
 Os estudantes vão-se concentrando para o meeting, desde a sala de convívio até à porta da entrada onde os porteiros, em vão, fazem esforços para arredar os jovens.
– Saiam daqui! Tenham paciência! Cumprimos ordens!
  Já defronte à porta envidraçada, Leonor vê as tais ordens aproximarem-se, ordens fardadas, de viseira transparente caída, armas em riste. A jovem mulher não tem tempo para pensar, o coração aos pulos, faz uma fuga em frente, precipita-se pela escada abaixo, assusta-se com o estrondo de uma bala atirada para a bandeira da porta. Escorrega-lhe uma sandália, desequilibra-se e rola até ao fundo da escada. Ouvem-se gritos, canalhas, fascistas, assassinos! Alguns estudantes, que os porteiros não conseguiram arredar, ficaram feridos pelos estilhaços dos vidros. Mas nesse dia ninguém morreu. A poeira misturada com o sangue dos arranhões no braço, nos joelhos, conspurcam a brancura do vestido. Voltaire e o Micromégas, tiveram de esperar para outro dia.
 Leonor está agora na Rua Santos Dumont, a  médica  entrecorta o discurso: - Fascistas! Fascistas! Desta vez não foi nada, mas podias ter perdido a criança! Oh, se podias! Quando é que conseguiremos correr com esta  corja?!

 São oito da manhã do dia 25 de Abril de 1974. Leonor acabou de dar banho à filha, a papa espalhada por todo o lado. Mudou-lhe a fralda, meteu-a no carrinho para a deixar no infantário, antes de seguir para as aulas, na Faculdade.
  Toque estridente da campainha. Era a Dona Angelina, a vizinha do lado:
– Menina Leonor, tem o rádio ligado?
Não tinha. Não sabia de nada, não senhora.
–  Está uma revolução na rua! Sabe-se lá o que virá aí!
–  Pior do que já temos não pode vir! Olhe que não pode, não, Dona Angelina!
–  Sabe-se lá, menina Leonor! Sabe-se lá! Ele há coisas…
 A vizinha atravessou o patamar pouco confiante: - Estes estudantes são sempre contra o governo, sabe-se lá, se esta Leonor estudante e professora será também de confiança! Simpática ela é, sim senhora, e prestável, por mais de uma vez me ajudou a trazer os sacos das compras da loja ali em frente. Mas se for política, cruz credo, Deus me livre e guarde! E benzia-se, invocando Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Vêem-se caras, não se vêem corações, Dona Angelina franzia o sobrolho enquanto dava duas voltas à chave, não fosse o diabo tecê-las, e a revolução entrar-lhe de portas adentro. Sabe-se lá!
 Leonor liga o rádio, “posto de comando das Forças Armadas”, e o coração enche-se de esperança. Chegou ao infantário e deu com o nariz na porta. Um letreiro dizia: «Encerrado por segurança.» Voltou para casa. Viu as imagens do Carmo na televisão, avistou o companheiro em cima de uma árvore, olha o pai, olha o pai… O pai à noite chegou cansado.
– Conta lá, conta lá, tive de ficar aqui em casa todo o santo dia, o infantário fechado, a menina a pedir colo num berreiro desatado!
 Seis dias depois, Leonor embrulhou a filha num xaile traçado entre a cintura e os ombros, e levou-a à manifestação do 1º de Maio. Para se habituar à Liberdade, pensou. A criança não chorava nem tinha medo da vozearia dos altifalantes. Fixava os olhos muito abertos ora nas bandeiras vermelhas, agitadas pelo vento da esperança, ora nos cartazes que não podia ler: «O povo já não tem medo!», «Fascismo nunca mais!», «25 de Abril sempre!»

 Passaram velozes quarenta anos na vida de Leonor. Traz ainda a pasta pesada de livros, mas já vazia de sonhos. Reformou-se de professora, mas continua a trabalhar graciosamente (estranha palavra!) no Centro de Investigação da Faculdade. Nada do que faz poderá ser remunerado. A legislação é clara para ela, bem menos clara para altos funcionários do governo. Dá-lhe um nó no estômago saber que prescreveu a coima do Banco de Portugal ao grupo de fiéis seguidores do beatífico Jardim Gonçalves, locupletado com a choruda reforma de cento e setenta e cinco mil euros, tenho de escrever por extenso, não vá alguém julgar que me enganei nos números. Quem confiou nele é que foi enganado. Um  escândalo num país de pobreza galopante, mas de memória curta. Austeridade, antiga palavra de conventos, é agora a medida por onde se apertam os cintos. Avizinham-se mais cortes nas pensões, ouviu-se o veredicto a sair do sorriso Pepsodent, já algo embotado, daquele rapaz, primeiro-ministro que tinha dez anos no 25 de Abril e que não conheceu a miséria salazarenta. Leonor conhece o pai dele - médico, escritor, transmontano de boa cepa -, o filho não lhe herdou as qualidades. Hélas!
 Vai agora apanhar o metro na Cidade Universitária; avista ao longe, os doze degraus da cantina. Esses continuam sólidos. Leonor fecha os olhos e vê o vulto do passado a rolar na escada.

                 Teresa Martins Marques



Abril – 40 Anos
Âncora Editora / Associação Portuguesa de Autores

Nota da Direcção

Quis a Associação Portuguesa de Escritores evocar os 40 anos do 25 de Abril, dia e projecto, tempo e realizações, memória e devir. Um tributo plural, nascido da liberdade de pensamento e criação, capaz de convocar testemunhos, análises, instâncias do júbilo ou da revolta, a palavra sem grilhetas que só a democracia assegura.

Para o efeito foram convidados todos os sócios. Reúnem neste lugar as múltiplas vozes, tal como chegaram, à margem até de critérios editoriais que noutras circunstâncias seriam adequados. Poesia, ficção, ensaio, teatro, escrita biográfica, entre mais registos, conjugam-se aqui, segundo escolha de cada autor, celebrando uma efeméride que, pelos sulcos deixados na sociedade portuguesa, é História, legitimação, estímulo e luz acendendo-se além da treva.
Os conteúdos que integram o presente volume, tão diversos, responsabilizam apenas quem os subscreve, assumindo uma dimensão especular que não será indiferente aos leitores.
Agradecendo a quantos tornaram possível o empreendimento, entre eles António Baptista Lopes e a “Âncora” pela cooperação entusiástica, a APE depõe nas mãos dos seus membros e do público este momento medular da sua intervenção cultural.
A Direcção
Autores:
A. do Carmo Reis
Adelaide Graça
Adriano Augusto da Costa Filho
Afonso Cruz
Alfredo Luís Oliveira Luz
Álvaro de Oliveira
Amadeu Baptista 
Andrade Santos
Anto Affonso 
António Augusto Menano
António José Borges 
António José Fernandes
António José Santos Branco 
António Sá
António Souto
Armando Cardoso 
Augusto Deodato Guerreiro
Aurelino Costa
Carlos Brito 
Carlos Vale Ferraz
Cláudio Lima
Conceição Oliveira
Cristino Cortes
Domingos Lobo
Eduardo Águaboa 
Eduardo Olímpio
Fátima Pitta Dionísio
Fernando Bento Gomes
Fernando Grade
Fernando Miguel Bernardes 
Fernando Morais
Fernando Rovira
Francisco do Ó Pacheco
Graça Pires
Gracinda Sousa
Hélia Correia
Henrique Garcia Pereira
Henrique Madeira
Isabel Antunes 
Isabel Rainha
Jacinto Rego de Almeida 
João Alves da Costa
João Apóstolo 
João Pedro Mésseder
João Rasteiro
João Rui de Sousa
Joaquim Murale
José Correia Tavares
José do Carmo Francisco
José Emílio-Nelson
José Miguel Noras
José Rodrigues Dias
José Viale Moutinho
Júlia Nery
Julieta Monginho
Liberto Cruz
Luis Eugénio Ferreira
Luís Graça
Luís Souta
Luís Vendeirinho
Luís Vieira da Mota
Luísa Ducla Soares
Manuel dos Santos Serra
Manuel Fortuna Martins
Manuel Frias Martins
Manuel Simões
Maria Alcina Adriano 
Maria do Céu Silva
Maria do Sameiro Barroso 
Maria Toscano
Maria Virgínia Monteiro
Mário de Carvalho 
Marta Fialho
Miguel Barbosa  
Miguel Raimundo
Miguel Real
Nicolau Saião
Nuno Vicente
Orlando Soares
Paulo Jorge Brito e Abreu 
Paulo Sucena
Pires de Sousa
Rogério Pires de Carvalho 
Rui Carlos Souto
Sérgio de Sousa
Teresa Martins Marques
Vergílio Alberto Vieira
Vítor-Luís Grilo
Zélia Chamusca 

Zulmira Bento 

6 comentários:

  1. "Reformou-se de professora,mas continua a trabalhar graciosamente no Centro de Investigação da Faculdade"e ... é a autora de "A mulher que venceu Don Juan",não é verdade,Teresa Martins Marques?
    Texto admirável,que se lê de um fôlego, ,tal como o romance.Parabéns,Teresa!

    Uma moncorvense

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  2. Ana Diogo Maravilhoso texto! 'Leonor' irreverente e sempre sedenta de justiça! Tal como a autora do texto...
    Obg, Lelo Demoncorvo. Esta nova página é uma pérola no seu blog

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  3. Maria Leontina Trigo Fernandes :
    Gostei muito Teresa. Como tb me revejo e a si, nesses tempos...!!! Um belíssimo auto retrato...,a Leonor! Apesar de tudo, sinto saudades! Um abraço.

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  4. Texto de rigor ,cheio de vida,autêntico.Vida vivida passa a bela prosa.Um escritor tem que viver para enriquecer a sua escrita.A ficção é uma variante da realidade,uma tradução livre.Como gostei deste texto.
    Leitor

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  5. Parabéns, Teresa. Um texto soberbo ! Uma vida extraordinária !
    O Blog está enriquecido.
    O Lelo também está de parabéns.

    Abraços
    Júlia

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  6. mais um belo texto publicado no nosso blog.Parabéns à autora e aos administradores do blog.
    Adalberto j.

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