sábado, 27 de setembro de 2014

JACOB DE CASTRO SARMENTO II (Reedição dos posts publicados no blogue "Os Judeus em Trás-os-Montes")


No auditório do centro cultural de Bragança, no decorrer da feira do livro, realaizou-se no domingo passado, 15 de Junho a apresentação do livro - Jacob de Castro Sarmento. A sessão foi presidida pelo sr. presidente da câmara municipal, engº Jorge Nunes que manifestou muito interesse em que se faça o estudo da importância que os judeus e os marranos tiveram na história da cidade de Bragança e em todo o distrito. Sobre o livro e o trabalho dos autores falou a drª Carla Vieira, da cátedra de estudos sefarditas da universidade de Lisboa.

Seguiu-se a intervenção de Fernanda Guimarães que realçou o papel dos marranos fugidos de Bragança na fundação da sinagoga e da comunidade judaica de Londres. Júlio Andrade referiu-se à urgência que há em desenvolver uma rota dos judeus em Trás-os-Montes. Na assistência destacava-se um grupo de pessoas idas expressamente do Porto e outro grupo de gente de Carção. Ficou a promessa de em breve haver uma edição inglesa do livro, a qual está a ser preparada

Prefácio
“Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou.”
Álvaro de Campos, Opiário
Na dedicatória da sua obra Matéria Médica, physico-historico-mechanica, dirigida a Marco António de Azevedo Coutinho, então secretário de Estado e enviado extraordinário e plenipotenciário à corte britânica, Jacob de Castro Sarmento ousou fazer uma sugestão a tão ilustre figura da corte portuguesa:


“[...] quisera eu humildemente propor a Vossa Excelência e à Real Academia de História que sem sair, a meu ver, da instituição dela, seria um grande brasão da nossa Nação Portuguesa, o deputar alguns dos sapientíssimos académicos para escreverem uma história de todos os sábios lusitanos que floresceram em todos os tempos passados, dando relação de seus escritos, assim dos que escreveram dentro dos domínios próprios, como dos que floresceram e escreveram entre os estranhos. Esta história, não faltando o material para compô-la, prognostica dois grandes benefícios a Nação Portuguesa: o primeiro consiste em que olhando as nações para a nossa história literária e vendo aos nossos ali juntos florescer em casa e fora dela, esse semblante com que agora, por falta desta noticia, nos olham como superiores se mudaria no de veneração para os nossos antepassados que os excederam a eles; o segundo consiste em que vendo nós mesmos na história dos sábios literários lusitanos tantos incentivos para sermos grandes entre as gentes quantos são os gloriosos exemplos de nossos predecessores, deixando o ócio que nos fez perder um pouco de vista à nossa antiga proeminência, nos aplicaremos com mais cuidado que Nação alguma para que a nossa diligência, em imitação da antiga, venha a produzir o material para uma nova historia literária [...]”
A obra foi publicada em 1735. Então, Castro Sarmento contava já com um currículo admirável: tinha escrito uma memória sobre a inoculação da varíola, um tratado dedicado às virtudes de certos tipos de águas minerais, três sermões sobre a celebração do Quipur, uma paráfrase ao Livro de Ester e um elogio fúnebre em memória do rabi David Nieto, da congregação de Londres, cidade onde se encontrava a viver desde os anos 20 do século XVIII. Sobretudo, era membro da Royal Society, tendo sido, assim, um dos primeiros judeus a integrá-la.
Portanto, bem vistas as coisas, Jacob de Castro Sarmento inseria-se já na categoria de que ele próprio fala na dita dedicatória, a dos “sábios lusitanos” que “floresceram e escreveram entre os estranhos”. E ainda estava apenas no início da sua carreira. Afinal, a Materia Medica abre um período de produção científica altamente profícua que apenas cessaria com a sua morte, com cerca de 70 anos de idade. A química, a física newtoniana, a cirurgia, a farmacologia e até a astronomia foram alvo do interesse de Castro Sarmento e áreas nas quais deixou a sua marca indelével.
Porém, séculos passados, este “sábio lusitano” da diáspora tem sido tratado com semelhante incúria a que foram sujeitos os outros “sábios” aos quais fez menção na dedicatória da Materia Medica. Peca por defeito a bibliografia portuguesa dedicada a Jacob de Castro Sarmento. Salvemos algumas excepções, nomeadamente os opúsculos escritos por Augusto Isaac d’Esaguy, ou o mais recente trabalho desenvolvido por José Pedro Sousa Dias relativo à introdução e uso da água de Inglaterra em Portugal. Fora isso, Sarmento surge apenas de uma forma pontual na historiografia nacional. É uma lacuna lamentável não existir uma única tese de mestrado ou doutoramento em Portugal dedicada à vida e obra de uma das figuras mais proeminentes da diáspora sefardita em Inglaterra e da ciência setecentista escrita em português (e se existe, deixo já aqui as minhas desculpas e as minhas esperanças numa maior divulgação de tal trabalho).
Por outro lado, esse olvido não deixa de ser uma infeliz ironia do destino.
Afinal, o percurso de Jacob de Castro Sarmento foi marcado por uma relação quase bipolar com a terra e a gente que o viu nascer. Sai de Portugal sob o encalço da Inquisição, ameaçado pelas prisões efectuadas no seio da sua família e da sua esfera de relações. Em Londres, é acolhido pela comunidade sefardita estabelecida na cidade, não sem gerar desconfianças e acusações que o perseguiriam durante toda a sua vida. Como membro da Royal Society, Castro Sarmento serve de intermediário entre esta instituição e a sua congénere portuguesa, a Academia Real de Lisboa. É frequentemente consultado pela embaixada portuguesa em Londres, quer nas suas funções de médico, quer de cientista. Torna-se, assim, próximo de Marco António de Azevedo Coutinho e do seu sucessor, Sebastião José de Carvalho e Melo. É com Sarmento que o futuro Marquês de Pombal se aconselha a respeito da reforma da Universidade de Coimbra. Também é por seu intermédio que chegam a Portugal as mais recentes inovações técnicas, como o microscópio ou o termómetro Fahrenheit. A sua permanente ligação a Portugal manifesta-se igualmente na sua obra. É o caso da Materia Medica, na qual Sarmento disserta sobre as propriedades das águas das Caldas da Rainha e as riquezas minerais do Brasil. Isto já para não falar no seu trabalho de introdução da água de Inglaterra em Portugal.
Em 1755, ao ter notícia do terramoto que abalara o seu país natal, Castro Sarmento escreveu a Diogo de Mendonça Corte Real, lamentando a calamidade e prontificando a sua ajuda “pois sabe muito bem, que uma grande parte do meu tempo e melhor da minha vida o tenha interessado no bem público e benefício da minha Pátria”. A resposta da pátria é que nem sempre foi a desejada. Sarmento planificou a tradução para português da obra de Francis Bacon. O financiamento não chegou. Sarmento empenhou-se na composição de um dicionário de português-inglês. A sua sorte foi a mesma. Sarmento propôs a criação de um jardim botânico à Universidade de Coimbra e à Academia Real de História. Nenhuma das instituições aceitou a proposta e a oferta de ajuda de Sarmento e de Hans Sloane, então presidente da Royal Society. A história natural não era uma prioridade. Em suma, Sarmento queria introduzir em Portugal a vanguarda da ciência europeia mas a sua pátria não partilhava as mesmas aspirações.
A pátria não valeu a Jacob de Castro Sarmento. E a religião também não. Baptizado como Henrique de Castro, viveu como católico até à sua chegada a Londres. Então, converteu-se ao judaísmo e ingressou na congregação de Londres, sob a protecção de David Nieto. A sua ligação à Bevis Marks começaria a esvanecer-se a partir da morte do rabi. Os laços romper-se-ia definitivamente em 1758, quando se casa com uma mulher cristã e escreve à congregação a comunicar as razões do seu afastamento. Jacob morre como anglicano.
Matt Goldish, autor de um interessante artigo sobre a adesão de Sarmento às teorias newtonianas (“Newtonian, Converso and Deist: the Lives of Jacob (Henrique) de Castro Sarmento”, Science in Context, vol. 10, n.º 4, Inverno 1997), refere que a adesão de Sarmento ao judaísmo não exprimiu um profundo sentimento religioso mas antes a conveniência de se encontrar ligado à comunidade sefardita de Londres e que, após a morte do seu patrono, o rabi Nieto, a sua vivência religiosa passou para um plano secundário. Como refere o autor, Sarmento ganhou então um “novo herói”, Isaac Newton, e a sua permeabilidade ao pensamento newtoniano deveu-se muito ao facto de não possuir uma ligação profunda a nenhuma confissão religiosa.
Afinal, Sarmento viveu toda a sua vida sob a sombra da perseguição religiosa: em Portugal pela Inquisição, em Londres, vítima da desconfiança de alguns membros da congregação. Olhando para trás, vemos como a opressão religiosa passou de geração para geração na sua família.
Apenas compreendemos o homem, compreendendo essa funesta herança. E é sobretudo a este nível que o presente estudo, levado a cabo por Maria Fernanda Guimarães e António Júlio de Andrade com afinco e dedicação, representa um contributo inestimável para o conhecimento não só da vida, como também do passado geracional de Jacob de Castro Sarmento.
Sigamos, assim, a história de uma família que acompanha a história de uma instituição, arquétipo da intolerância religiosa. Encontremo-nos com Francisco Rodrigues, tabelião de Bragança, um baptizado em pé, preso em 1531, nos primórdios do estabelecimento do Tribunal da Inquisição em Portugal, e perscrutemos as vidas dos seus descendentes até aos primos de Jacob de Castro Sarmento que, ao longo da primeira metade do século XVIII, vão povoando os cárceres do Santo Oficio. Mais de dois séculos de medo, de calabouços, de evasão.
É um cenário de cativeiro aquele que Jacob de Castro Sarmento deixa atrás de si quando embarca rumo a Inglaterra. O que encontra ao chegar às margens do Tamisa? Uma resposta a esta pergunta é igualmente delineada no presente estudo, abordando a constituição da comunidade sefardita de Londres e, sobretudo, da sua sinagoga, a Bevis Marks, com particular destaque para os bragantinos que encontraram nesta cidade a liberdade religiosa posta em xeque na sua terra natal.
Uma geração notável de sefarditas de origem portuguesa povoava a cidade de Londres no momento em Sarmento ali chega. Recordemos apenas alguns nomes. Issac de Sequeira Samuda, também médico formado em Coimbra, chega a Inglaterra aquando de Sarmento e foi igualmente membro da Royal Society, assistiu a embaixada portuguesa e recebeu o título de médico extraordinário do Príncipe Regente de Portugal. Benjamim Mendes da Costa, Solomon da Costa Athias e Joseph Salvador integraram o comité destinado ao envio de colonos judeus para a Carolina do Sul. Emanuel Mendes da Costa, originário de uma família com raízes portuguesas, foi bibliotecário da Royal Society, dedicou-se à História Natural, em particular nas áreas da conchologia e do estudo dos fósseis, onde deixou uma obra muito relevante. São apenas alguns nomes de judeus portugueses ou descendentes de famílias portuguesas que se notabilizaram em Londres, muito para lá da comunidade sefardita ali estabelecida.
Com uma tão marcante presença de portugueses na cidade que o acolheu, poderíamos supor que Jacob de Castro Sarmento se tenha sentido em casa em Londres. Mas, e as desconfianças entre os seus congéneres? E as acusações de conluio com o Santo Ofício português (acusação extraordinária, tendo em conta a perseguição inquisitorial de que a sua família foi alvo!)? E as rivalidades dos seus colegas de profissão? A determinado momento, talvez Jacob de Castro Sarmento se tenha sentido tão desamparado pelos seus quanto se sentiu a sua prima Mariana Santiago, obrigada a pedir esmola porta a porta das famílias cristãs-novas de Lisboa, recebendo em troca a denúncia em vez do pão. A sorte de um e de outro foi bem diferente. Os contextos em que viviam também o eram. Porém, a sombra da perseguição sempre acompanhou esta família. A presente obra demonstra-o habilmente.
Carla da Costa Vieira
(Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste»)
Lisboa, 22 de Março de 2010


Nota do Editor: Reedição dos posts públicados no blog :

http://marranosemtrasosmontes.blogspot.pt/

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