segunda-feira, 4 de julho de 2016

"Manel da mala", o cidadão-fantasma

Fotografia: Rui Manuel Ferreira

Seja por vontade própria ou porque um dia a memória o atraiçoou, "Manel da mala", como é apelidado na região do Douro Vinhateiro, é o perfeito desconhecido.

Ou um conhecido imperfeito, na medida em que, até hoje, de Moncorvo a Foz-Côa, onde viveu os últimos 60 anos, o homem que já terá dobrado os 90 não só nunca revelou nada sobre si mesmo, como deu argumentos para que os seus primeiros 30 anos de vida configurassem um livro não escrito de meras especulações. Tanto que, na falta de rigor sobre os elementos básicos de um bilhete de identidade, que nunca exibiu, como o nome, idade ou naturalidade, e perante o desconhecimento sobre se é casado ou tem filhos, cresce a lenda.

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Conta-se que nos fins dos anos 50 do século passado, a localidade de Moncorvo despertou para a solidão de um jovem tímido, com manifesta dificuldade em articular as palavras e sem emprego na vila onde acabara de chegar.

E, como terá dado a ideia que tinha aparecido para ficar, embora dormisse na rua e mais tarde num casebre, Manel carregou sacos de amêndoa na antiga União Agrícola, a troco de quase nada, e chegou a ser incumbido de ir buscar o correio ao comboio, nomeadamente as películas de cinema que eram exibidas na vila.


"Não pedia nada a ninguém. Quando tinha fome cantava, e, se não era um, era outro, davam-lhe de comer", recordou Júlio Castelo, de 66 anos, que ainda era miúdo quando conheceu o Manel na taberna da família. Contudo, terá sido junto dos elementos que compunham a banda de música que Manel foi rebatizado. "Era perdido pela banda e, além de não faltar aos ensaios, ia connosco para as atuações, transportando a mala das partituras. E daí a alcunha", explicou, sorrindo, Adriano Catalão, que gere um pronto-a-vestir em Moncorvo e integrou a filarmónica da terra.

Experiência traumática

Entre pontos que se acrescentam ao conto, sobressai no entanto a história de que "Manel da mala" foi motorista numa corporação de bombeiros do Norte do país e que o atropelamento mortal de um peão lhe mudou a vida. É, aliás, a este hipotético episódio que muitos atribuem a perda de memória ou o encerramento voluntário do passado na sua própria "mala".

Para Francisco Camelo, também residente em Moncorvo, a história, ou pelo menos parte dela, é credível. "Cheguei a ver-lhe na carteira uma carta de condução de pesados da antiga Direcção-Geral de Viação do Norte com o número 8", precisou. "E tinha o nome Manuel Silva e mais qualquer coisa que não me recordo", disse também. Dados que "Manel da mala" não confirmou nem desmentiu.

Confrontado pelo JN no Lar da Misericórdia de Foz-Côa, onde vive desde 2003, o homem misterioso, a quem a diabetes já levou uma perna, pouco mais consentiu do que o nome próprio. Quanto às demais perguntas, Manel manteve a reserva, mas entre um cigarro e outro que fumava sofregamente, respondeu que não tinha família.

Fez uma pausa como se esperasse que a cortina de fumo lhe escondesse o olhar vivo e atirou: "Anda pelo Mundo, mas não tenho saudades".


Manuel não sabe quem é. Ou não quer saber?

Fonte: http://www.jn.pt/nacional/interior/manel-da-mala-nada-diz-sobre-a-vida-que-teve-5262029.html

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