segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

 MEMÓRIAS ANTIGAS DO NATAL

POR BENTO DA CRUZ

Há oitenta e nove anos, passei o Natal ao colo de minha mãe. Não me lembro de nada, mas é de supor que o leite materno tivesse um sabor especial para mim naquela noite. No ano seguinte, do qual também me não lembro, é de crer que já ferrasse o dente na febrazinha do bacalhau. A partir do terceiro ano, começo a ter umas luzes. É delas que vou falar.

O primeiro fogacho que guardo na lembrança é o de que a aldeia acordava envolta em neblina naquela manhã. Uma neblina misteriosa, com o seu quê de sobrenatural. Na altura não pensava nisso. Mas hoje relaciono-a com a messiânica manhã de nevoeiro que nos há-de trazer D. Sebastião. A coisa tem a sua lógica. D. Sebastião, salvador de Portugal. O Menino de Belém, salvador do mundo. Felizes os que acreditam. Outra impressão que anda comigo desde esse tempo é a de que as pessoas acordavam todas bem dispostas naquele dia – ignoro se à espera da salvação, se do bacalhau e das rabanadas. Seja como for, embora a igreja o não impusesse, todos guardavam dia santo a 24 de Dezembro. E até, à conta disso, me estou a lembrar de uma vez minha mãe ter jungido as vacas e me ter dito:

-       Toca este carro ao teu pai à Touça da Fonte. Até chorei pelo caminho: “junguir no dia de Natal…”, fungueteava eu, a limpar as lágrimas ao canhão da véstia. Agora também não sei se eu chorava por ter de ir à lenha se pela lembrança de que, àquela hora, já todos os da minha igualha estavam à lareira a debulhar a pinha.


As pinhas eram a única prenda de Natal com que as crianças da minha aldeia e do meu tempo podiam contar. Em Peireses não havia pinheiros mansos. De modo que as pinhas, como o polvo ou o bacalhau, vinham de longe e custa- vam dinheiro. Por isso eram racionadas. Uma por cabeça ou, na pior das hipóteses, uma para dois. Com que entusiasmo nós as debulhávamos ao calor dos tições, virando-as de um lado e do outro, à espera que elas arreganhassem os dentes, que nós lhe íamos extraindo e dispondo em eirado na pedra do lar. E começava aí a competição:

-           Quantos rendeu a tua? -Setenta e cinco pares!
-           A minha oitenta e três!

Depois, dia fora, era uma jogatina que nunca mais acabava. “Par ou pernão”, “rapa”, “arrebindai-ma”, olho vivo, mão ligeira, raciocínio rápido, que tudo isso faz parte do jogo da vida ao qual o do pinhão servia de treino.

Outra lembrança que me ficou desse tempo é a do cheiro à resina que se desprendia das pinhas e nos impregnava as mãos, a roupa, a pituitária, a casa toda. Se nos lembrar- mos de que o incenso, que eu suponho ser também uma resina, foi um dos presentes trazidos pelos Reis do Oriente ao Menino de Belém, facilmente concluiremos que uma pinha é a prenda mais adequada para oferecer a uma criança pelo Natal. Em “sapatinho na chaminé” ninguém falava. Aliás todos nós andávamos de tamancos e as chaminés eram quase todas de alçapão, a saber: um buraco no colmaço do beiral, com uma pala movediça que se levantava ou descia com um lareiro ao sabor das exigências da chuva e do vento.
A “árvore de Natal” era completamente desconhecida e, a respeito de presépios, só o da igreja matriz, a três quilómetros de distância.

Na altura não dava por isso. Mas hoje reconheço que a maioria das casas da minha aldeia tinham muito de Presépio ou Gruta de Belém. Eram térreas, exíguas, e os animais domésticos, coelhos, galinhas, cães, gatos, cabritos chegadiços, recos criados ao caco, cirandavam por ali à vontade por cima da lenha, por debaixo do escano, por entre as pernas das pessoas. Uma simples trancada separava a cozinha das cortes do gado. De modo que a vaca e o burro estendiam a cabeça por cima da cancela a ver-nos debulhar as pinhas à lareira.
Mas eis que as mães, irmãs e tias corriam connosco de casa. Que lhe deixássemos campo livre aos potes e às sertãs. E nós íamos jogar o pinhão para a rua ou para o forno, conforme fizesse bom ou mau tempo.

A refeição do meio-dia, a que nós chamávamos jantar, era de certo modo aligeirada, para deixar espaço para a ceia. A seguir deitava-se a fazenda ao monte.

A partir dos seis, sete anos, já todos nós éramos pastores e por lá passávamos a tarde a jogar o pinhão, completamente esquecidos das cabras e das vacas, que não se ensaiavam nada para assaltar o lameiro ou a messe do vizinho e sujeitarem-nos a uns cachações, dos quais nem a solenidade do dia nos livrava.
Pelas quatro e meia, cinco horas, vinham as fazendas do monte e nós corríamos às cozinhas ao vezo da merenda, naquele dia condimentada com uma ou duas guloseimas extra.

Entre a merenda e a ceia, era a hora de visitar a parentela e receber os vizinhos ou simples conhecidos encontrados casualmente na rua:

-           Venha beber um copo.
-           Já que faz gosto nisso e atendendo ao dia…
Alguns apenas debicavam, por delicadeza. Outros bebiam-lhe bem, ficavam vermelhuscos, ruminantes, pegajosos. Era preciso correr com eles educadamente:

-           Quer cá cear connosco?
-           Não senhor, Deus me livre, hoje é dia dedicado à família…
-           Então beba mais um copo para a despedida.
-           Então cá vai à sua saúde.
Pelas seis horas era noite cerrada e nós continuávamos a jogar os pinhões à luz da candeia.

Outra impressão que me ficou desses tempos é a de que um calor especial envolvia a aldeia naquela noite. Na casa dos cabaneiros, onde, a cotio, ardiam apenas uns chamiços verdes, havia, naquela noite, uma boa fogueira de toros de carvalho. Nem que fossem roubados.

Era também em casa dos cabaneiros que apareciam os filhos que andavam a servir por fora e vinham consoar com as famílias.

Numa casa ou noutra liam-se as cartas dos ausentes, vindas de Lisboa, da América, do Brasil: “Saudoso irmão: hoje mesmo mandei lançar mão da pena para saber da tua saúde, que a minha, ao fazer desta, fica boa, graças a Deus. Saberás…” Que se soubessem o que por lá os esperava, nunca teriam deixa- do a sua “terrinha abençoada”.

Pediam notícias de tudo e de todos, e despediam-se até para ao ano “se Deus quiser”. Essas missivas ingenuamente sentimentais e falhas de gramática, arrancavam lágrimas de saudade aos adultos. Que nós, as crianças, vivíamos noutro mundo. Só uma palavra mágica nos arrancava ao mundo encantado do jogo do pinhão:

- Todos para a mesa!
O pai punha o “Pau do Natal”, um tranco de carvalho alvarinho cortado naquele dia, ao lume. Ali ficava a arder enquanto a ceia durasse. Depois era religiosamente guarda- do como amuleto contra as trovoadas. Logo que estas se anunciassem, punha-se o “Pau do Natal” ao lume até elas se afastarem.

A mesa estava bonita naquela noite. Uma grande toalha de linho caseiro bordado à mão a cobrir todo o tampo e outra mais pequena, do mesmo tecido e lavor, dobrada em quatro, à cabeceira, a servir de trono a uma broa centeia, espécie de arco-da-aliança entre nós e o Deus das searas.

Comíamos todos do mesmo prato. Umas travessas redondas de faiança antiga, enormes, com o desenho de um galo galaroz todo emproado na concavidade e cercaduras multicoloridas.

Uma para as batatas, as couves, e as cebolas, ainda fumegantes, outra para o bacalhau, um delicioso bacalhau que então havia e a que chamavam de cura inglesa, uma terceira para polvo, seco, mas devidamente batido e demolhado, e a quarta para o molho.

A melhor das recordações que guardo é do molho, onde nós mergulhávamos a garfa- da antes de a levar à boca. Bebia-se um divino falerno tinto da Costa de Anelhe pela mesma caneca, à roda. Tudo conforme Deus manda, avançavam de lá os postres. Rabana- das, letria, doces de jerimum, bolinhos de bacalhau, figos secos, nozes, peras bêbadas, um cálice do Três Velhotes, uma taça de champanhe.
Oferecida a mesa, voltávamos ao jogo do pinhão. Missa do galo, pelo menos na minha aldeia, não havia. Mas no dia 25 ninguém faltava às Três Missas de Natal, tida como arma infalível contra as arremetidas do diabo. No caso de nos aparecer o porco sujo, bastava dizer: “Valham-me a Três Missinhas do Natal”, para ele dar um estouro como uma castanha no assador.

Por isso, pela meia-noite, o mais tardar, obrigavam-nos a ir para a cama. Seria bonito dizer aqui que sonhávamos com o Menino Jesus. Mas não quero mentir. Se algum sonho bom nos embalava o sono, era o de ter- mos ganho ao jogo dos pinhões.

(in Correio do Planalto, nº 685, 15/12/2014)


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